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- JANUS 2008 -



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De Maastricht a Amesterdão e Nice: um percurso imperfeito

José Paulouro das Neves *

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Desde o início, o rumo ficara traçado: reganhar para a Europa um lugar influente nos equilíbrios de um mundo cuja dinâmica de mudança já se anunciava; avançar através de “realizações concretas” geradoras de “solidariedades de facto”; assumir o projecto de integração como um processo capaz de organizar contínuas e graduais mudanças; garantir instituições sólidas, assentes em equilíbrios propiciadores de uma capacidade decisória; superar os limites das fronteiras nacionais, mediante partilhas de soberania, com vista a objectivos comuns enquadrados pelo império do direito. Decerto que para esta soma de ambições se abriu, também desde o começo, um trajecto de dificuldades, divergências políticas, e alguns bloqueios derivados do melindroso ajustamento dos interesses singulares ao proveito colectivo. Assim acontecia aliás quando se assinou, em 1986, o Acto Único, o qual, mau grado a modéstia da sua designação, proporcionou um significativo impulso às Comunidades, então a viverem um dos seus recorrentes momentos de enleamento. Com ele se confirmou o objectivo de “fazer progredir a União Europeia”; se decidiram meios jurídicos e institucionais para a realização do Mercado Único; se promoveu o reforço da cooperação económica e monetária, primeiro passo para a futura UEM; se inseriu um novo título sobre a coesão económica e social; como ainda se acordou um Tratado sobre a Cooperação Política, com a finalidade de disciplinar a formulação e harmonização de uma política externa europeia.

 

O Tratado de Maastricht

No justo momento em que a Europa procurava relançar uma dinâmica económica e social, a história foi sacudida por um daqueles inesperados períodos de aceleração e de rupturas que põem à prova e traçam a capacidade dos homens e das instituições. Recordemos: em Setembro de 1989, abre-se a primeira brecha na pesada cortina de ferro com a abertura da fronteira entre a RDA e a Áustria; em 9 de Novembro, desaba o Muro de Berlim e começa a decomposição do império soviético; em 28 de Novembro, o chanceler Kohl propõe o seu plano para a unificação da Alemanha; em Dezembro, o presidente Bush e Gorbatchev acordam no reforço da cooperação americano-soviética a fim de evitar a desestabilização do Leste europeu; em Abril de 1990, o Conselho Europeu de Dublin apoia a reunificação das duas Alemanhas, que se formalizará em Outubro, e as Comunidades acolhem, em condições especiais, 18 milhões de cidadãos dos Länder orientais. Também por essa altura, pressente-se com clareza a rápida desintegração do bloco comunista e a morte anunciada das suas organizações âncora: o Comecon e o Pacto de Varsóvia. Perante este novo desenho da Europa e o peso que nela passara a ocupar a Alemanha, o reforço da construção europeia assume igualmente uma diferente prioridade, surgindo como resposta indispensável às alterações geopolíticas do continente e à inequívoca confirmação da hegemonia americana. Sob forte iniciativa conjunta de Mitterrand e Kohl, os Estados membros decidem, em Dezembro do ano seguinte, em Roma, reunir duas conferências intergovernamentais para negociar, ao mesmo tempo, o texto de um Tratado em que, a par da União Económica e Financeira (corolário da concretização do Mercado Único), se aceita finalmente o objectivo de uma União Política. Dos objectivos fixados por onze Estados membros (pois a delegação britânica conduzida pela Senhora Thatcher deixara-se isolar na sua oposição determinada), pode-se retirar já alguma medida das metas do exercício: extensão das competências da futura União; o desenvolvimento do papel do Parlamento Europeu em matéria legislativa; a definição de uma cidadania europeia; o estabelecimento de uma política estrangeira e de segurança comum. A negociação cedo porém faria ressurgir tradicionais divisões quanto ao rumo da construção europeia, ao ritmo da passada integradora, ou ao equilíbrio institucional, mais visíveis em certos dos seus temas: a estrutura do Tratado, ou, por outras palavras, a escolha entre uma inclinação intergovernamental ou uma via de sentido federalizante; os poderes do Parlamento Europeu; o exacto alcance de uma política externa e de defesa; o grau de solidariedade para uma melhor coesão do espaço comunitário; a precisa natureza do princípio da subsidiariedade; a dimensão social. Percebe-se, assim, que tenha sido árduo o trabalho de fixação do texto finalmente acordado em Maastricht, numa difícil noite de Dezembro de 1991, cujas formulações por vezes torturadas revelam o esforço de compromisso e a vontade de evitar uma crise em momento político melindroso, marcado sobretudo pela tragédia fratricida nos territórios da ex-Jugoslávia. Mas, pelo Tratado de Maastricht nascia enfim a União Política, decerto imperfeita, contraditoriamente longe das expectativas de uns e excessiva quanto aos temores de outros. Foram várias as novidades: uma estrutura em três pilares funcionando sob lógicas e mecanismos institucionais distintos, em que coexistem o método comunitário (para o primeiro pilar) e a cooperação intergovernamental (relativamente à política externa e a matérias de justiça e de assuntos internos (segundo e terceiro); o início do processo de integração da UEM e da criação da moeda única; o estabelecimento de uma cidadania europeia, proporcionando novos direitos cívicos para aproximar a União dos seus cidadãos; uma incipiente política externa comum, nomeadamente através dos instrumentos das acções e posições comuns; a possibilidade de integrar na política externa e de segurança uma componente de defesa comum a prazo (pela primeira vez abate-se um tabu); uma inédita cooperação nos domínios da justiça e dos assuntos internos. Paralelamente, Maastricht introduz elementos novos, como o reforço da coesão económica e social, que passa a ser um dos objectivos da União; redefine competências ou cria outras novas, embora numa abordagem quase sempre tímida: assim ocorre com o ambiente, as grandes redes, a investigação e o desenvolvimento, a indústria, a protecção dos consumidores, a educação, a cultura, a saúde. Para além disso, importa ainda registar, sem preocupações exaustivas, a aprovação de um protocolo adicional (a onze, devido à oposição britânica) sobre a dimensão social; a extensão de poderes do Parlamento Europeu, nomeadamente através da aplicação da co-decisão e da intervenção no processo de designação da Comissão Europeia; ou a criação de um Comité das Regiões.

Depressa o processo de ratificações iria alimentar um nutrido fogo cruzado de críticas ao texto de Maastricht, censurado por uns pelas suas tibiezas e amplas cedências ao método intergovernamental e, por outros, por alegados avanços federalizantes, de que a irreversibilidade da moeda única seria clara ilustração. Já se disse atrás que o esforço para compatibilizar durante a negociação as diferentes visões da Europa, projecta-se na complexidade do novo Tratado, no acanhado alcance da generalidade das novas competências, na restritiva e ambígua formulação da Política Externa e de Segurança Comum (Delors compararia a PESC a um automóvel com motor de máquina para cortar relva...), ou nas dificuldades para progredir em políticas promotoras de uma necessária aproximação aos cidadãos. Mas convirá inscrever como alguns dos seus activos, para além da moeda única (emblemático passo federador e sinal de uma ambição), o estabelecimento da cidadania europeia, agente de identidade comum; os progressos quanto a uma maior democratização das instituições (os novos poderes conferidos ao Parlamento Europeu); a definição da unicidade do quadro institucional, barragem a derivas de uma Europa à la carte ; a consolidação normativa da política de coesão. Outros textos acordados em Maastricht, como os capítulos inseridos nos pilares dois e três do Tratado, não obstante a sua obediência intergovernamental, acabaram por representar um progresso do rumo integrador por neles ter ficado declarada a sua natureza evolutiva, o que afinal o tempo iria revelar (veja-se no domínio da defesa o Acordo de Saint Malo, de 98, entre a França e o Reino Unido; ou, no campo do terceiro pilar, a via de comunitarização parcial adoptada pelo Tratado de Amesterdão).

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As revisões de Amesterdão e de Nice

Ficara claro, logo no fecho das negociações, que face ao grau de divergências e à pressão dos esperados alargamentos, se impunha voltar a um outro exercício de revisão, pelo que se decidiu convocar uma nova Conferência Intergovernamental, já em 96. O mandato dado pelo Conselho Europeu de Turim em 93 declinava os principais temas a serem examinados: “uma União mais próxima dos cidadãos” (o que abrangia designadamente as questões relativas à justiça e assuntos internos); “as instituições no seio de uma União mais democrática e eficaz” (a alteração do seu funcionamento e os poderes do Parlamento Europeu); “o reforço da capacidade de acção externa da União” (como fazer progredir uma identidade europeia de segurança e defesa e dar à Europa uma voz internacional adequada ao seu peso económico). Posteriormente, outros temas foram acrescentados, como os direitos fundamentais na União, a sempre adiada questão da sua personalidade jurídica, ou as cooperações reforçadas (novo instrumento para evitar os bloqueios decisórios que se temiam face ao desafio dos alargamentos). Como já se esperava, o exercício negocial, tanto na escolha dos temas, como nos trabalhos de fixação de um texto, pôs de novo a descoberto as reticencias doutrinais de uns, as expectativas de ganhos nacionais de outros, ou os limites de aceitação do objectivo integrador por alguns. Mas, no resultado final, poderão salientar-se alguns progressos reais. Desde logo, no terceiro pilar, pela criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça, nomeadamente por uma comunitarização parcial das questões relativas à livre circulação de pessoas e da integração do acquis de Schengen no quadro da União. Relativamente à Política Externa e de Segurança Comum (PESC) registe-se o estabelecimento de um Senhor Pesc (embrião do Ministro dos Negócios Estrangeiros delineado no texto da Constituição Europeia), bem como de uma unidade de planificação e alerta rápido; o reconhecimento do princípio da abstenção construtiva, mantendo os Estados um direito de veto ao invocarem razões de política nacional importantes; e a integração no Tratado das chamadas missões de Petersberg (de natureza humanitária ou de manutenção de paz). No plano sempre controverso das reformas institucionais, assinale-se um alargamento de poder do Parlamento Europeu, que obtém um lugar paritário com o Conselho no processo legislativo da co-decisão; e a criação do instrumento das cooperações reforçadas, que permite a vários Estados associarem-se em certos capítulos – mas não na PESC – para, no seio do quadro institucional e cumprindo um restritivo condicionalismo, poderem avançar mais do que outros. No âmbito das políticas comuns, apesar da modéstia dos progressos, cabe sublinhar a integração do protocolo social no Tratado após a retirada da oposição britânica; e um novo título sobre o emprego visando o reforço da coordenação das iniciativas comunitárias. E ainda: a enunciação dos princípios orientadores da União, bem ilustrada pela inédita possibilidade da suspensão de direitos de um Estado membro que repetidamente os viole.

Tal como já ocorrera com Maastricht, o novo Tratado previa a realização de uma nova CIG para tratar, antes do alargamento a Leste, o que se chamaria de reliquats ou left-overs de Amesterdão, a saber, a dimensão e composição da Comissão Europeia, a ponderação de votos dos Estados membros no Conselho, temas a que acresceria por decisão ulterior a possível extensão das decisões a tomar por maioria qualificada. O exercício, que resultaria no Tratado de Nice de 2000, foi revelador das sombras de alguns egoísmos que por vezes se projectam no caminho do projecto europeu. Com efeito, desencadeado pelas divergências de Amesterdão e com o argumento da indispensabilidade da reforma institucional por razões de eficácia perante o vasto alargamento a Leste, a CIG depressa tornou evidente o que alguns nela pretendiam jogar: a reformulação a seu favor de anteriores equilíbrios na divisão do poder relativo dos Estados membros na condução da União e em matéria de representação nas suas instituições, porque o que temiam era afinal o impacto nos mecanismos de decisão da chegada de vários países de media e pequena dimensão. Poder-se-á dizer, porém, que um final espírito de compromisso atenuou a negativa imagem transmitida pela acrimónia dos trabalhos do Conselho Europeu de Nice, pelo que o texto aprovado acabaria por não acolher os desequilíbrios de certas propostas. Assim, ocorreu quanto à ponderação de votos para as votações por maioria qualificada, pois embora se abandone o sistema tradicional (uma só grelha de ponderação) para adoptar um factor demográfico, este ficou moderado pelo critério novo da maioria de países; quanto a outros pontos em exame, refira-se que, não obstante uma forte pressão contrária, se manteve, até nova revisão, a paridade da representação dos Estados Membros na Comissão Europeia; se ofereceu ao Parlamento Europeu um mais lato poder de co-decisão; se estendeu – todavia com modéstia – o âmbito das matérias a legislar por maioria qualificada; e se flexibilizou o condicionalismo quanto às cooperações reforçadas, que continuaram vedadas à área de defesa.

Tudo somado, Nice legaria, porém, o áspero sentimento do erro cometido durante a negociação ao vincar o factor demográfico como linha diferenciadora no projecto comum.

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Informação Complementar

Europas

Na breve história da construção europeia, o registo dos anos entre 1991 e 2000 distingue-se por uma evidente bulimia diplomática: no espaço de uma só década, Maastricht, Amesterdão e Nice procuram – com sorte diversa – ajustar o Tratado de Roma e as suas instituições às novas realidades de um continente politicamente redesenhado. E, se em Maastricht, o debate sobre o sistema institucional sempre teve subjacente, mas não resolvida, a melindrosa escolha da verdadeira natureza do projecto, não seriam os resultados minimalistas da revisão de Amesterdão, nem a falsa inocência dos objectivos de eficácia que enrouparam o exercício de Nice, que dariam resposta efectiva a tais questões. Recorde-se entretanto, que, a par do trabalho diplomático, uma paralela reflexão iria mobilizar políticos e académicos, e oferecer ideias, teses – e algumas provocações.

Da Alemanha chegou em 1994, um texto do grupo parlamentar CDU-CSU (conhecido por documento Lamers-Schäuble), defendendo uma abordagem federal clássica, a partir de um núcleo duro; quase ao mesmo tempo, o então primeiro-ministro britânico, John Major, sugere, em Leyden, uma Europa à la carte , anti-integracionista; também Balladur, à época chefe do governo francês, se inquieta e escreve que prefere uma Europa dividida em três círculos concêntricos, albergando diferentes Estados e diversas ambições; logo a seguir, Giscard d'Estaing reage e, para obstar a eventuais efeitos diluidores do alargamento, propõe duas Europas: a Europa-espaço, para disciplina do Mercado Único, e a Europa-potência, de claro desenho federal; em 2000, Joschka Fisher, na altura MNE alemão, retoma os temas do núcleo duro e da federação, mas para defender um processo evolutivo que, partindo de cooperações reforçadas, levaria à “plena integração da federação europeia”; já antes, Delors havia igualmente exposto a sua visão: uma grande Europa, dotada de instituições mais simples e de competências mais largas do que a União Europeia, e uma pequena Europa, aberta a todos os Estados membros que quisessem formar uma federação de Estados-nação com as respectivas consequências: moeda única, política económica concertada e política externa capaz de acções diplomáticas e militares.

Nesta diversidade de concepções estava já traçado afinal o caminho para os entendimentos, ambiguidades e divergências que atravessariam a próxima Convenção e o futuro debate sobre a Constituição Europeia.

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* José Paulouro das Neves

Embaixador. Professor Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

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