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- JANUS 2009 -



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O euro, o BCE e a política monetária

Manuel Farto *

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A arquitectura do sistema monetário europeu, admite-se geralmente, reflecte de forma dominante o modelo germânico de Banco Central no qual a estabilidade dos preços constitui o objectivo primeiro e quase único. Os elementos-chave deste sistema podem, sumariamente, descrever-se do seguinte modo:

• o Banco Central tem um mandato estrito em matéria de estabilidade de preços;

• beneficia de um elevado grau de independência com um governador eleito por oito anos e inamovível;

• a política monetária diz respeito apenas a choques que influenciem a área do euro no seu conjunto, enquanto as outras políticas (orçamental e estrutural) possuem perspectivas nacionais;

• a tomada de decisão é centralizada num conselho constituído por seis membros que formam o conselho executivo juntamente com os governadores de cada um dos bancos centrais dos países que adoptaram o euro como moeda.

Sendo certo que uma inflação elevada pode gerar distorções ao bem-estar e custos de crescimento, estes efeitos perdem muita da sua força quando o debate se centra em níveis de inflação positivos mas moderados, inferiores, por exemplo, a 5%.

Na verdade, a mesma preocupação de preservar a estabilidade dos preços não levou as autoridades dos outros países, designadamente dos Estados Unidos da América, a definirem objectivos tão estritos e limitados para o Banco Central. O Federal Reserve Act determina para o Banco Central dos EUA um conjunto de objectivos: «maximum employment, stables prices, and moderate long-term interest rates», não se limitando apenas à exigência estrita do controlo da inflação.

Esta opção por parte das autoridades monetárias europeias constitui, a nosso ver, uma importante limitação à actividade do BCE e à política monetária que enfraquece a capacidade de resposta das autoridades em momentos de crise quando todos os instrumentos anticíclicos potenciais deveriam estar disponíveis para a acção. Esta limitação não deixará de ter consequências muito sérias se, como é muito provável, a crise económica que está em marcha se aprofundar.

Além desta limitação, o BCE, no âmbito da independência que referimos, permitiu-se dar mais um passo no caminho de uma espécie de fundamentalismo monetário ao precisar a definição de estabilidade de preços como uma variação do Índice Harmonizado dos Preços no Consumidor (IHPC) inferior mas próximo de 2%. Precisão inexistente tanto nos estatutos do BCE como no do Federal Reserve Act.

Esta fixação constitui uma iniciativa exclusiva do BCE e levanta várias questões. A primeira diz respeito ao que poderíamos denominar de taxa óptima de inflação sobre a qual não existe acordo entre os economistas (para uns deveria ser zero, para outros deveria ser positiva mas baixa não existindo acordo quanto ao seu valor). Em segundo lugar, a medida da inflação é imprecisa, admitindo-se que os desvios do IHPC sejam não inferiores a 1% (podendo 2% ser um target excessivamente baixo). Em terceiro lugar, pode não ser suficientemente flexível para incorporar todo um conjunto de considerações que as autoridades possam desejar integrar nas decisões políticas, gerando incompreensões e problemas de credibilidade. Em quarto lugar, é difícil atribuir um horizonte preciso à estabilidade de preços. Em particular, o regresso à estabilidade após um choque pode ter de ser gradual em função de múltiplas circunstâncias.

 

O sucesso do euro e a fraca performance da economia do euro

É indiscutível que o euro tem-se vindo a consolidar como uma moeda de reserva internacional e naturalmente tal facto não está desligado da sua afirmação como «moeda forte». Neste sentido, parece indiscutível o sucesso da moeda europeia. Esta firmeza da moeda europeia assenta, sem dúvida, num estrito controlo da inflação e exprime-se na tendencial apreciação da sua taxa de câmbio.

Todavia, o sucesso do euro não significa o sucesso da economia europeia. Longe disso, a performance da economia do euro tem-se revelado inferior à dos seus principais parceiros e concorrentes. Este facto pode ser ilustrado pelo fraco crescimento económico face aos países e regiões com os quais se relaciona mais intensamente, designadamente em termos das variáveis taxa de crescimento do PIB e taxa de desemprego. De entre as economias seleccionadas pode observar-se que a área do euro apenas ultrapassa Portugal e o Japão em termos de crescimento económico (0,3% abaixo dos EUA e 0,6% abaixo do Reino Unido, por exemplo) e obtém o pior resultado em termos de taxa de desemprego com excepção do mundo para o qual não temos dados comparáveis.

Embora sem se pretender estabelecer uma responsabilização directa e simplista, não é improvável que uma taxa de juro tendencialmente elevada e uma moeda porventura sobreapreciada possam ter contribuído nalguma medida para a fraca prestação real da economia do euro, quando comparada designadamente com os EUA ou mesmo com a dos países europeus que não aderiram ao euro, como o Reino Unido.

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A insatisfação da política monetária

Se não podemos associar imediatamente a política monetária às fracas performances da economia real do euro, até porque, como referimos anteriormente, o BCE não assume para a política monetária verdadeiramente objectivos de natureza real, podemos confrontá-la com o seu próprio objectivo: o de manter a taxa de inflação a um nível «inferior mas próximo de 2%». Em dez anos, o objectivo fixado, e sublinhemos o único a que o BCE se atribui a si próprio, nem por uma só vez foi atingido.

Mais precisamente, apenas em 1999, o objectivo foi atingido mas, como é evidente, o BCE terá tido pouca influência na sua concretização se recordarmos que a sua criação é de 1998 e que a fixação irrevogável das taxas e a criação do euro data de 1999. Aliás, não deixaria de ser profundamente irónico que, a verificar-se a previsão do Fundo Monetário Internacional, o BCE viesse pela primeira vez a realizar o seu objectivo em 2009, num dos períodos mais difíceis da história recente das economias europeias.

Embora o BCE nunca tenha cumprido o objectivo também nunca dele se afastou muito. Mas para uma instituição que tem como princípio o rigor, obrigando-se, ao contrário dos outros, a definir um target preciso para a inflação, a questão não deixa margens para vacilações: ou o objectivo está mal definido ou a autoridade monetária é incapaz de o realizar. Eis os incontornáveis termos da questão. A nosso ver, é o nível da meta fixada que constitui o problema.

É igualmente certo que, em matéria de inflação, a sua performance foi melhor do que a de alguns países, como os EUA, mas pior do que a de outros, como o Reino Unido, por exemplo. Na verdade, mesmo assumindo uma política monetária mais abrangente nos objectivos, aí incluindo objectivos de natureza real, como o crescimento e o emprego e não estabelecendo, por consequência, qualquer meta rigorosa para a inflação, a maioria dos bancos centrais dos países desenvolvidos tem mantido a desejada estabilidade de preços, por vezes com melhores resultados do que o próprio BCE, sem assumirem uma ortodoxia monetária tão rígida.

Em segundo lugar, não há qualquer fundamento que sirva de base à definição da estabilidade de preços com o rigor que lhe imprime o BCE. Não se pode excluir que a meta dos 2% constitua em si mesmo um freio inútil ao processo de ajustamento dos preços relativos e ao crescimento económico em economias dinâmicas e abertas com rigidez nominal.

 

O BCE face à crise: a incoerência da política monetária

Quando a crise do subprime deflagrou no Verão de 2007, tornou-se desde logo patente o falhanço total dos bancos centrais na regulação do sistema financeiro nos EUA (onde teve início) e na própria Europa, incapazes de detectar as possíveis consequências de certas «inovações financeiras» e tomarem, em tempo útil, as medidas que lhes competiam. Neste sentido, o falhanço da supervisão, regulação e controlo foi total.

Apesar da persistência das tensões nos mercados financeiros desde o início da crise e das previsões em baixa da actividade económica, em 3 de Julho último, o BCE elevou a sua taxa de juro de referência de 4% para 4,25%, o que constituiu, a nosso ver, um erro grave. Em 6 de Agosto, mesmo quando já era evidente o declínio do crescimento nas principais economias do mundo desde Junho, designadamente na Alemanha e na França, o BCE persistiu na manutenção da taxa de 4,25% embora admitindo que o crescimento económico da Europa do euro seria «particularmente fraco» no segundo e terceiro trimestres de 2008. A justificação que «os riscos da estabilidade de preços no médio termo permanece elevada» já era no quadro referido pouco aceitável.

No início de Setembro, todos os indicadores apresentavam claros sinais de uma degradação das economias, constatando-se o abrandamento da taxa de inflação esperada (para 3,8%), a subida da taxa de desemprego (0,1%), a queda do Business Climate Indicator e do Economic Sentiment Indicator, a quebra do crescimento (0,2% no 2.º trimestre), a queda da produção industrial, a quebra do índice da produção no sector da construção (0,6%, em Junho). Ainda assim, o BCE decidiu manter a sua taxa invariável.

Entretanto, a crise financeira aprofundava-se. O BCE lutava desesperadamente, através de sucessivas injecções de liquidez, para evitar a contínua tendência para a subida da taxa interbancária, que assim manifestava o aumento da desconfiança entre as instituições financeiras e na generalidade dos agentes económicos sem todavia conseguir evitar que a escassez de crédito e o seu encarecimento continuassem a agravar a situação financeira das famílias e empresas.

Nestas condições, e com a inflação a abrandar, uma incoerência na condução da política monetária vai-se progressivamente afirmando entre a manutenção a um nível elevado da taxa de juro de referência (4,25%), para conter a inflação, e a implementação de sucessivas injecções de liquidez que criam tensões inflacionistas. Tratava-se fundamentalmente de tornar a inclinação da yield curve positiva, num momento em que ela estava na Europa flat ou mesmo negativa, permitindo a aceleração da rentabilidade bancária. Ao contrário do BCE, a Fed já percebera a questão e baixara as taxas de juro, dando uma indicação ao mercado do nível a que desejava que as taxas se estabilizassem.

A 8 de Outubro, o BCE, em coordenação com mais cinco bancos centrais – FED e o Banco de Inglaterra, Canadá, Suécia e Suíça – baixou a taxa de juro em 0,5 pontos, numa acção de coordenação única na história dos mercados financeiros.

Pela primeira vez ao fim de um ano de crise, a política monetária dos dois lados do Atlântico seguia uma mesma tendência embora com resultados decepcionantes, pelo menos inicialmente. Nem a expectativa de que os dois bancos na Europa e EUA (com mais margem o BCE, 3,75% do que o FED 1,5%) possam vir a baixar de novo proximamente a taxa de juro, travou o movimento da Euribor em alta. Na verdade, só a coordenação política entre os principais Estados, garantindo depósitos e impedindo falências bancárias, evitou a contínua degradação do estado da confiança.

 

A credibilidade do BCE e a alteração do «design» da política monetária

A principal e a mais inconveniente consequência do fracasso sistemático na prossecução dos objectivos e das incoerências e hesitações nas práticas do BCE é a perda de credibilidade que se vai instalando entre os agentes económicos e os analistas. Nestas circunstância, torna-se, a nosso ver, necessário abandonar a ideia corrente na Europa que um governador sábio deve tomar as suas decisões independentemente dos poderes democraticamente instituídos, assumindo, além das tarefas de supervisão, tão mal desempenhada no passado recente, unicamente o objectivo de manter a estabilidade dos preços. Não pode aceitar-se o alheamento por parte do BCE dos outros problemas/objectivos da economia como se existisse uma neutralidade entre a economia real e as variáveis monetárias, devendo antes contribuir para o crescimento e a estabilidade macroeconómica (e não apenas monetária) das economias do euro.

Neste sentido, as práticas de muitos outros bancos centrais, desde a FED ao Banco de Inglaterra ou ao Banco Central do Japão, embora nem sempre isentas de erros e/ou hesitações, mostram que não é indispensável uma independência radical do Banco Central em relação aos agentes políticos democraticamente eleitos para que a política monetária seja conduzida num quadro de estabilidade de preços. Elas mostram igualmente que a estabilidade de preços não se reconduz necessariamente à fixação de regras de chumbo como a ortodoxia dos 2% definida pelo BCE, pouco flexível e inadequada a uma economia monetária e creditícia.

Assim, perante os erros e incoerências da política monetária e face à necessidade de enfrentar uma conjuntura muito provavelmente difícil, urge vencer as ideias ultrapassadas pelos acontecimentos recentes, reformular a tolerância relativa entre o desemprego (8% é bem tolerado) e inflação (3% é mal tolerada), contribuir para a construção de uma novo sistema financeiro internacional e reconsiderar o paradigma da omnisciência unilateral corporizado no BCE e na sua política monetária.

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Informação Complementar

O «fantasma» da inflação

Justifica-se presentemente o receio existente nas autoridades do BCE em matéria de inflação ou mesmo de estagflação? Este perigo é real mas menos real do que o perigo da estagnação. De facto, se tivermos em atenção que o movimento inflacionista resulta tipicamente da elevação dos preços das matérias-primas, designadamente petróleo, no que poderia ser interpretado como uma inflação pelos custos, é muito provável que tal efeito se venha a atenuar em consequência das tendências recessivas em desenvolvimento que reduzem a procura desses bens. Ao mesmo tempo, existem fortes razões para a quebra da procura associada ao aumento da incerteza, para a queda dos rendimentos esperados futuros e para o aumento da taxa de juro, que penalizam o investimento privado, a redução do rendimento disponível por via da redução da riqueza, que penaliza o consumo privado, e a quebra contagiante das exportações.

O problema de hoje é impedir que a recessão se transforme em depressão não adiantando ficar paralisado pelo fantasma de uma inflação posterior possível mas controlável, pelo que se torna necessária a utilização de todos os instrumentos da política económica de maneira coerente, coordenada e atempada, vencendo, se necessário, a obsessão paralisante anti-inflacionista do BCE/Bundesbank.

A saída para as dificuldades presentes exige a restauração do Estado de Confiança e esta implica a afirmação de uma ordem internacional que coordene esforços entre instituições e, dado o nível de globalização existente, entre países, definindo objectivos claros e instrumentos coerentes, evitando sinais que possam ser interpretados como contraditórios ou hesitantes. Pensamos que a construção de um novo sistema financeiro internacional, já longamente discutido sem consequências num passado recente, está, portanto, de novo na ordem do dia, com a particularidade de se poder tornar indispensável para restaurar a confiança nas economias dos países mais desenvolvidos.

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* Manuel Farto

Licenciado em Economia pelo Instituto Superior de Economia e Gestão. Doutorado em Economia pela Universidade de Paris-X. Docente no ISEG. Docente visitante da Universidade de Orléans (França) e da Universidade Federal da Paraíba (Brasil). Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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