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- JANUS 2009 -



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As mortes-doenças evitáveis, como expressão de genocídio?

Gianni Tognoni *

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A palavra-chave pela qual se pode começar é «evitável», uma vez que permite definir o problema de modo muito sintético: a saúde, ou seja, o viver, o adoecer e o morrer já não são, hoje em dia, expressão de um destino evolutivo «natural», mas de um produto que é medido, previsto e programado pelos processos de decisão da sociedade. O «direito humano» à fruição da saúde torna-se, cada vez mais, uma variável dependente do modo como a saúde-pública (a tecnologia e a política que se ocupa da gestão da «implementação do que pode garantir o direito à saúde») é interpretada, decidida e administrada pela sociedade, como qualquer outro âmbito da economia, da política e do mercado. Os dados concretos afirmam, sem qualquer dúvida, que a maioria dos problemas de saúde-cuidados de saúde não estão relacionados com falta de conhecimento mas com problemas de acesso a soluções que são perfeitamente acessíveis. As mortes-doenças que afectam grande parte do mundo são, de facto, «evitáveis». Se, ano após ano, esta evitabilidade não se tornar realidade, é lícito, ou obrigatório, perguntarmo-nos, se e a que nível existem responsabilidades? Existem qualificações adequadas para esta responsabilidade que está relacionada com um dos «direitos humanos»?

 

Quadro de referência geral

A reflexão aqui proposta visa então verificar:

a) Se e quanto do que acontece, nos cuidados de saúde global, pode ser qualificado e compreendido em termos de genocídio e/ou crime contra a humanidade;

b) que sentido e que implicações pode ter este exercício de verificação, no que respeita à relação entre conteúdos e práticas sanitárias e princípios e aplicações de uma cultura e de uma prática de direitos fundamentais na sociedade.

O quadro doutrinal da reflexão pode ser encontrado no retomar de interesse que se tem vindo a desenvolver nos últimos vinte anos, à volta da definição de genocídio: com um aumento dramático em coincidência com o que aconteceu nas situações de guerras não-convencionais, conotadas frequentemente com conflitos étnicos, em particular no Ruanda e nas nações que faziam parte da ex-Jugoslávia. Mas têm sido encontrados campos de aplicação em muitas outras situações onde os protagonistas-vítimas eram grupos humanos indirectamente envolvidos nos conflitos armados oficiais, desde os desaparecidos da Guatemala aos índios da Amazónia, à Argentina, às massas que se viram forçadas, por razões económicas e políticas, a migrações que têm mudado radicalmente as suas condições de agregação social, de identidade e, muitas vezes, até mesmo, a própria capacidade de viver.

Para aprofundar formalmente os aspectos jurídicos das mudanças doutrinais e das modalidades de aplicação das categorias de genocídio, tal como foi formulado na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, a 9 de Dezembro de 1948, pode fazer-se referência a três linhas de documentação e reflexão:

a) as actas da Convenção sobre a redefinição de genocídio, organizado pela «Fondazione Basso», em Nápoles, em 1993, que terminaram com um projecto de protocolos adicionais à Convenção de 1948;

b) os relatórios do grupo internacional de trabalho sobre o genocídio, publicados especificamente aquando da conclusão do Encontro de Buenos Aires, de 2007, têm dado substanciais contribuições relativas à qualificação, por um lado, dos crimes cometidos durante a ditadura militar argentina (1976-1983) e, por outro, à imputabilidade dos verdadeiros «massacres», dirigidos a grupos humanos marginalizados pela crise sócio-económica, que se seguiu aos governos Menem – De La Rúa;

c) as sentenças do Tribunal Permanente dos Povos, relativas à Guatemala, Amazónia, Timor- Leste, ao genocídio arménio; a formação das categorias do Direito Internacional logo depois da Conquista da América; as sessões sobre o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, sobre a ex-Jugoslávia, sobre a violação dos direitos das crianças, sobre a Colômbia («Tribunale Permanente dei Popoli, le sentenze: 1979-1998», Casa Editrice Stefanoni, Lecco 1998).

Sem poder, claramente, aprofundar todos os aspectos desta evolução doutrinal, é útil e pertinente tratar algumas temáticas fundamentais sobre as quais se formou um consenso estritamente coerente com uma interpretação (rigorosa, mas atenta às evoluções da história dos povos) dos princípios fundadores da Convenção de 1948.

1. Qualquer atentado à identidade, à sobrevivência, à liberdade de expressão, ao direito de futuro de um grupo humano, mesmo não chegando à sua destruição completa e mesmo não sendo motivado pelas razões clássicas «étnicas, raciais ou religiosas», pode fazer parte da categoria de genocídio.

2. A intenção deste atentado não tem, necessariamente, que ser declarada de forma explícita e formal. A repressão-intenção genocida aprendeu linguagens duplas: é muito raro que a intenção seja expressa com tanta clareza como a reconhecível no Holocausto. A própria existência da Convenção de 1948 impôs modalidades implícitas no planeamento e na realização da eliminação de grupos humanos e/ou da transmissão do seu património cultural, genético, linguístico, de direito de reprodução e de transmissão das identidades das forma de vida.

3. É cada vez mais evidente que a responsabilidade-imputabilidade não pode ser reconduzida a pessoas físicas, sobre as quais aplicar sanções penais. Processos colectivos e anónimos, que produzem os mesmos resultados, têm que ser considerados como as causas directas de um crime, do qual é menos importante a concreta perseguição penal (muitas vezes formalmente impossível e/ou não praticável com os actuais instrumentos jurídicos e com os equilíbrios/desequilíbrios de poder a nível nacional e internacional) do que o reconhecimento explícito de que «a destruição de grupos humanos tem um significado próprio e independente que empobrece duplamente a humanidade: da parte dos autores do crime é expressão de um delírio do qual a humanidade só se pode envergonhar; da parte das vítimas, empobrece uma riqueza cultural e moral que fazia parte do património universal» (F. Rigaux).

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Cuidados de saúde-genocídio: porquê e com que objectivo?

Os elementos principais que justificam, pelo menos, a legitimidade da hipótese e das perguntas que estiveram na base desta reflexão podem ser encontrados nas três contribuições propostas: sobre cuidados de saúde-saúde, como indicador privilegiado dos mecanismos e da extensão da recente violação dos direitos (ver «Saúde-cuidados de saúde: como indicadores privilegiados»); sobre a relação entre saúde e economia (ver «As relações entre saúde, direito, economia: os cenários»); sobre o papel dos fármacos como exemplo da ambivalência das tecnologias sanitárias (ver «Os fármacos e o mercado»). As caixas, por sua vez, mostram um esquema sintético dos dados que documentam quanti-qualitativamente (com informações extraídas da vasta literatura epidemiológica mais recente, disponível em relatórios oficiais das agências internacionais e nas publicações científicas mais importantes) de que forma e em que dimensões populações e grupos humanos têm sido privados do seu direito à vida e a um futuro.

Além dos comentários feitos aos dados que qualificam as suas características de destruição sistemática, prevista, não-evitada e provocada, é possível notar a dramática simetria com o que tem sido referido na primeira parte desta reflexão.

1. Existem causas directas e bem reconhecidas na base dos excessos de mortalidade e das condições humanas degradantes que, ano após ano, são previstas e confirmadas em números de pessoas na ordem dos milhões: equivalentes anuais dos genocídios historicamente documentados e citados como exemplos, também pela sua qualificação jurídica.

2. O risco e a concreta realização destas destruições são perfeitamente conhecidas da comunidade internacional (assim como das autoridades nacionais dos países e das regiões envolvidas). Contudo, a «constatação» não leva a intervenções que a possam evitar ou que possam corrigir o massacre e os relativos sofrimentos, humanamente degradantes e facilmente reconhecidos como verdadeiras torturas prolongadas até à morte.

3. As vítimas mais frequentes são crianças e mulheres, confirmando dramaticamente uma das características mais sublinhadas do genocídio: o atentado e a anulação do direito a um futuro e de transmitir o sentido de direito à vida às gerações vindouras.

4. A não-evitabilidade do que acontece está relacionada com a não-vontade e a não-disponibilidade em mudar comportamentos sociais e económicos que visam manter os privilégios e os interesses de minorias e que se atribuem o poder de decidir quais as vidas que têm direito a ser vividas e defendidas até ao fim, declarando, assim, de modo explícito, que existem grupos humanos inferiores, não-humanos e não-sujeitos do direito fundamental à vida e à dignidade.

5. A constatação pública e repetida deste destino de inferioridade e de não-direito à vida contribui para que seja considerado um fenómeno «natural», do qual ninguém pode ser declarado de facto responsável, representando um atentado permanente e eficaz à formação de uma cultura dos direitos fundamentais que, como foi acima referido, é uma das características mais dramáticas e inaceitáveis do genocídio.

 

A procura de um sentido

A saúde-cuidados de saúde é um dos sinónimos de vida.

Viver lado a lado com a consciência-constatação de que a saúde-cuidados de saúde é um dos indicadores da capacidade da sociedade discriminar quem pode e quem não pode fruir do direito à dignidade e à vida, coloca a todos uma pergunta, do mesmo tipo e gravidade das que todos os genocídios têm levantado: «Como é possível que isto tenha acontecido?».

A pergunta, que surge de estatísticas e de documentações similares às citadas como «exemplos» nos gráficos não se refere ao passado mas ao presente e ao futuro. Não existem responsáveis pessoais. Ou melhor, podem identificar-se muitos: governos; políticas económicas; legislações que despenalizam crimes de omissão e de acções directas (como as das multinacionais quando impõem, juntamente com as autoridades públicas, regras que não permitem o acesso a intervenções salva-vidas.)

Não existem lugares e instrumentos reconhecidos de Direito Internacional que possam, de modo eficaz, prevenir-condenar penalmente. Cláusulas como a de Doha, que afirma a possível prioridade dos cuidados de saúde sobre as patentes, assim como os códigos de autocertificação de ética das multinacionais, são soluções muito parciais, instrumentos que, muitas vezes, são mais de fachada do que substanciais. Quando o genocídio é considerado um episódio «normal» da história, recuámos claramente a uma fase anterior à da Convenção de 1948, ou então, 60 anos depois, a uma fase que precisa de uma nova cultura de direito, ou seja, da vida. Este não é só um problema da saúde-pública mas de uma sociedade que utiliza novamente a guerra (de baixa ou alta intensidade) como medida normal, impune-impunível, para decidir a vida das pessoas, dos grupos e das populações.

Consequência e expressão não menor desta corrupção das próprias categorias de referência de valor tem sido a transformação dos cuidados de saúde-saúde, de lugar, âmbito, instrumento, símbolo de defesa-promoção-fruição total da vida, em indicador «da sua evitável», selectiva e humanamente degradante negação.

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Informação Complementar

Guia essencial da mortalidade evitável

1. O cenário materno-infantil

Em 2006, 9,7 milhões de crianças morreram antes de completar os cinco anos de idade: 26.000 crianças morrem cada dia no mundo inteiro. Quase 40% destas crianças morrem durante o primeiro mês de vida e sobretudo por causas evitáveis, a partir das relacionadas com a pobreza, como a fome e as doenças (infecções respiratórias ou diarreicas ou evitáveis através de vacinas) e por causa das guerras. A água não segura, os serviços e as condições higiénico-sanitárias de má qualidade contribuem também para o aumento da mortalidade e morbilidade infantil.

Em metade dos óbitos de crianças com menos de cinco anos de idade, uma das principais causas, directa ou indirecta, é a má nutrição; cinco milhões das crianças que morrem com menos de cinco anos de idade morrem de fome.

 

2. Cada ano, mais de 500.000 mulheres morrem durante o parto ou por complicações durante a gravidez. Garantir a assistência sanitária às mães na África subsaariana significa conseguir salvar 800.000 crianças por ano.

Um cenário que lida com o mercado: HIV/SIDA

Nos últimos anos, a luta contra a SIDA produziu resultados significativos em termos de redução da mortalidade e de aumento da sobrevivência. Os dados apresentados pelos países industrializados mostram que, a partir de 1995, a terapia tem modificado radicalmente o decurso da doença.

A SIDA, por outro lado, continua a ter implicações trágicas para os LIC: na África Subsaariana 67% da população tem HIV/SIDA. As patentes sobre os fármacos dificultam o acesso a terapias por parte dos pacientes dos países mais pobres: é o mercado a ditar as regras da sobrevivência.

Fonte: http://www.un.org/millenniumgoals; Unicef, 2007; FAO, 2007; Unaids, 2007.

Tradução de Benedetta Maxia.

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* Gianni Tognoni

Médico, com especiais interesses nos domínios da farmacologia, experimentação clínica, epidemologia e saúde pública. Actualmente dirige um Instituto de investigação de fins não lucrativos, o Consorzio Mario Negri Sud. Há mais de trinta anos desenvolve actividade no campo dos direitos humanos e é Secretário Geral do Tribunal Permanente do Povos.

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Referências bibliográficas

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Dados adicionais
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