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- JANUS 2009 -



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Huntington e o debate sobre o choque de civilizações

Ivan Nunes *

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Com o seu instinto para a frase sonante e para a formulação provocadora, Huntington suscitou, logo em 1993, uma reacção fora do comum à sua tese do choque de civilizações, formulada num artigo na revista Foreign Affairs.

Mas o facto de ter falado no declínio da hegemonia ocidental numa altura em que o poder dos EUA estava no auge funciona agora a seu crédito, como também o facto de ter sido pessimista no imediato pós-Guerra Fria, também: esse período é hoje encarado como uma fugaz década de optimismo, iniciada em Novembro de 1989, quando caiu o muro de Berlim, e enterrada sob as Torres Gémeas de Nova Iorque, em Setembro de 2001. Ao dispor de uma linguagem aparentemente adequada para explicar os acontecimentos logo no momento em que se deu o 11 de Setembro, a tese de Huntington ganhou uma importância extraordinária no debate político à escala mundial (e não apenas ocidental). E, ainda, ao valorizar o papel, não da ideologia, mas da religião na política internacional, a tese parece tornar-se cada vez mais relevante à medida que nos afastamos do fim da Guerra Fria.

De facto, Huntington teve o engenho de compreender que o fracasso do marxismo em grande parte do mundo subdesenvolvido não se traduziria na vitória definitiva do modelo capitalista liberal democrático mas sim no fracasso, ou pelo menos na crise, das ideologias seculares. A distância a que o Egipto de hoje se encontra em relação ao tempo de Nasser, a Turquia em relação a Atatürk, a Índia em relação a Nehru ilustra bem este ponto. Na China, o marxismo é pouco mais que uma retórica vazia que ecoa outros tempos e a legitimidade do regime depende agora de uma ideologia nacionalista que combina Mao Zedong e Confúcio. Até à Guerra dos Seis Dias, em 1967, o conflito entre Israel e a Palestina configurava uma disputa territorial entre duas partes perfeitamente seculares; hoje, é um choque intratável entre duas visões opostas sobre direitos históricos e terras sagradas. No Iraque, os EUA travam uma guerra contra uma insurreição cuja arma principal são bombistas suicidas de inspiração religiosa. No Afeganistão, também. A lista poderia continuar. E a religião não é um atavismo dos mais pobres, progridindo antes nas camadas mais prósperas das sociedades mais modernas. Nos próprios Estados Unidos, desde o início do novo século, a pertença religiosa é o indicador mais fiável do sentido de voto dos indivíduos. Huntington acertou ao compreender que a globalização reforçaria o poder da religião, permitindo criar afinidades transnacionais com sérias consequências políticas.

Mas nada disto – o sentido de oportunidade, a pertinência do ângulo de análise, o pessimismo – equivale a uma confirmação em concreto das teses de Huntington sobre o choque de civilizações. Estas teses têm sido criticadas com veemência antes e depois do 11/9; e o próprio autor já procedeu a revisões importantes da sua teoria.

 

Os verdadeiros valores das civilizações

Por que é que as civilizações surgem na cena internacional no pós-Guerra Fria? Há factores de oportunidade que possibilitam este reaparecimento: com o fim dos alinhamentos ideológicos, as afinidades civilizacionais ficam livres para se manifestarem. A globalização, provocando a erosão das lealdades locais e nacionais, também contribui para isso. Mas as civilizações aparecem porque estavam lá; nunca teriam surgido do vazio. A ideia de Huntington é que as civilizações não apenas existem, mas «são básica», mais fundamentais do que todas as ideologias modernas. São como uma segunda natureza. Huntington sustenta que estão enraizadas na história e usa com frequência metáforas biológicas (o «sangue», a «família»), o que reforça a impressão de que o autor nos remete para uma explicação de tipo naturalista. Por que é que as civilizações existem não é explicado.

Ora, as civilizações não são entidades materiais, nem são, directamente, agentes políticos exercendo controlo sobre forças armadas, como os estados ou as superpotências, por exemplo. São filtros, são afinidades que emergem entre os estados. São factores ideológicos, imateriais, difíceis de demonstrar. A partir daqui, duas críticas são adiantadas contra a tese do Choque. Primeiro, as provas da existência de civilizações avançadas por Huntington são falíveis: os seus exemplos são escolhidos a dedo e é possível encontrar contra-exemplos, ou interpretações alternativas desses mesmos exemplos. Huntington vê na venda de armamento da China ao Irão um sintoma da constituição de um eixo sino-islâmico; mas não vê na venda de armas dos EUA à Arábia Saudita um eixo islamo-cristão. Interpreta acontecimentos perfeitamente convencionais de realpolitik em termos «civilizacionais». Aceita pelo seu valor facial a tentativa de Saddam Hussein de converter a primeira guerra do Golfo num combate entre fiéis e infiéis, dando dignidade religiosa a um conflito puramente político. Também exagera o envolvimento de muçulmanos estrangeiros na guerra da Bósnia.

Em segundo lugar, as características que Huntington atribui a cada uma das civilizações, e as fronteiras que traça entre elas (bem como a própria definição das suas sete ou oito civilizações), são arbitrárias. Os críticos assinalam que, se há civilizações, não podemos adivinhar os seus valores sem que os investiguemos do ponto de vista empírico. Os politólogos Ronald Inglehart e Pippa Norris, baseando-se num inquérito conduzido em mais de 70 países e que abarca mais de 80% da população mundial, afirmam que existem, de facto, diferenças culturais significativas entre o mundo islâmico e o mundo ocidental. Mas estas não dizem respeito aos valores políticos das populações (o apoio à democracia é tão expressivo no mundo islâmico quanto no Ocidente) e sim ao problema das relações entre homens e mulheres, onde se encontra uma divergência marcada. Concluem que há um «choque sexual de civilizações», que Huntington omite.

Ao propor-se estabelecer, sem suficiente suporte empírico, o que é que essencialmente define cada civilização, Huntington expõe-se à crítica de que a sua concepção das civilizações é uma construção ideológica. Tratando a democracia e os direitos humanos como valores ocidentais, serve políticos autoritários, que se permitem, agora com a bênção de Huntington, definir eles mesmos a natureza autêntica da sua própria civilização. O discurso de Huntington «naturaliza» os conflitos políticos, encara as identidades civilizacionais como praticamente imutáveis, perenes através da história; faz da História humana o desenrolar perpétuo das mesmas disputas. Divulga concepções míticas sobre a identidade dos povos e sugere que a natureza de entidades políticas se encontra nos livros sagrados de cada civilização.

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A crítica de Amartya Sen vai ainda mais longe. O economista indiano assinala que, com frequência, aqueles que contestam a definição que Huntington dá dos valores de uma civilização caem ainda na ratoeira de acabar por confirmá-lo, tomando cada civilização como um bloco, atribuindo-lhe identidade política, em vez de as tratarem com o grau de diferenciação interna que elas realmente têm. Os que afirmam que os muçulmanos não são violentos, mas pacíficos, que a verdadeira natureza do Islão é a paz, acabam por procurar em livros sagrados a «natureza essencial» dos povos e por atribuir a entidades religiosas o poder de definir identidades políticas. «Os clérigos muçulmanos [...] são então tratados como porta-vozes ex officio do chamado mundo islâmico [...] O mundo é visto, de repente, não como uma série de povos, mas como uma federação de religiões e civilizações» (Sen 2007: 42). A tentativa de alcançar a paz internacional através da paz entre «civilizações» é, afinal, um espelho invertido da hipótese do choque.

 

O estranho caso da América Latina

Nalguns casos, o que é criticado é a definição que Huntington faz dos valores de cada civilização. Noutros casos, porém, é a própria existência das civilizações enumeradas por Huntington. Faz sentido falar de uma civilização eslavo-ortodoxa? Como explicar a integração da Bulgária, da Roménia, da Grécia e do Chipre na União Europeia? Existe uma única civilização africana, abarcando todo o continente ao sul do Sahara? Faz sentido falar numa civilização islâmica, abstraindo das enormes diferenças que separam árabes e persas, indonésios e paquistaneses, turcos e curdos, xiitas e sunitas? No caso africano, o próprio Huntington tem dúvidas; noutros casos, o autor assinala que as civilizações apresentam níveis variáveis de coesão interna, e que um dos casos mais fracturados é o do Islão.

Mas o exemplo da América Latina é intrigante. Huntington (1999: 51) reconhece que a América Latina, tal como a América do Norte, descende da civilização europeia. Atribui-lhe um estatuto separado por quatro razões: a) a América Latina «teve uma cultura corporativista, autoritária, que a Europa registou em muito menor grau»; b) a América Latina é quase exclusivamente católica, praticamente não conheceu os efeitos da Reforma Protestante; c) o desenvolvimento económico latino-americano não tem seguido o padrão dos «países norte-atlânticos»; d) a civilização latino-americana incorpora culturas indígenas significativas, designadamente no México, na América Central, no Peru e na Bolívia (embora não na Argentina, no Chile ou no Brasil).

Esta lista é surpreendente, porque Portugal e Espanha (pelo menos até à entrada na CEE, em 1986) parecem encaixar perfeitamente nos três primeiros critérios; e o quarto não é preenchido pelas duas maiores potências da América Latina, donde é razoável concluir que ele não é essencial. Devemos, assim, juntar Portugal e Espanha aos membros da civilização latino-americana? Ou considerar que a sua entrada na União Europeia fez deles, na melhor das hipóteses, «países dilacerados» (como a Turquia, a Rússia e o México), estados cujas elites procuraram alterar (historicamente, sempre sem sucesso) a identidade civilizacional do seu país? Mesmo a Itália e a França partilham algumas das características que identificam a América Latina e a separam do Ocidente. São países de clara maioria católica e, se as suas experiências autoritárias foram relativamente curtas e se lhe seguiu um modelo económico parecido com o da Europa do Norte foi graças a intervenções políticas directas efectuadas no pós-II Guerra Mundial. Pode a identidade civilizacional de um povo estar assim tão dependente de contingências políticas recentes?

Talvez o enigma da civilização latino-americana só possa ser compreendido por relação com problemas internos aos EUA que Huntington tem em mente. Ao elencar os maiores riscos que o Ocidente actualmente corre, Huntington assinala entre eles a incapacidade dos EUA para definirem a sua identidade civilizacional própria (ocidental), e o perigo de se deixarem resvalar para uma identidade meramente política, assente na liberdade, na igualdade a no reconhecimento dos direitos das minorias. A população que constitui a maior ameaça à identidade ocidental dos EUA são precisamente os imigrantes «hispânicos» – do México e da América Central – que estão muito concentrados em algumas regiões próximas da fronteira, mantêm laços fortes com os países de origem, não falam inglês, têm uma taxa de natalidade superior à da população americana «tradicional» e podem vir a tornar-se maioritários em zonas como a Califórnia. Huntington acredita que a proximidade geográfica e a facilidade de comunicação com a América Latina leva a que estes imigrantes, ao contrário dos que no passado vieram da Europa, resistam à assimilação dos valores da maioria anglo-protestante.

Não há, mais uma vez, dados empíricos que suportem a tese da discrepância entre os valores anglo-protestantes maioritários e os valores da imigração hispânica nos EUA. Ainda que existissem, porém, a civilização latino-americana passaria a ser definida, não de acordo com uma lógica interna, com um mínimo de identidade própria que a unifique desde a Argentina e do Brasil até ao México, mas segundo um critério de exclusão da civilização ocidental: aquilo que não cabe ou não deve caber no Ocidente.

Um problema similar ocorre com o «eixo islamo-confuciano», que Huntington acredita estar a emergir na política internacional. Nas palavras do antigo embaixador de Singapura nas Nações Unidas, Kishore Mahbubani, «a verdadeira tragédia de sugerir uma ligação islâmico-confucionista é que obscurece a natureza fundamentalmente diferente do desafio colocado por estas forças. O mundo islâmico terá grandes dificuldades para se modernizar. Até que o consiga, a sua turbulência transbordará para o Ocidente. O Extremo Oriente, incluindo a China, está preparado para alcançar a paridade com o Ocidente» (Mahbubani 1999: 46). Há um único prisma pelo qual a China e o Islão aparecem como duas civilizações «ascendentes»: o prisma da ameaça.

 

O choque transformado

Do seu texto inicial na Foreign Affairs, em 1993, para o livro, três anos mais tarde, parece haver um subtil deslizamento. Onde Huntington sublinhava o papel das civilizações começa a enfatizar o papel dos «estados-núcleo»: as grandes potências de cada civilização, cuja capacidade para administrarem a ordem na respectiva região do planeta assenta, em parte, na afinidade cultural que partilham com os outros estados da mesma região.

Mas, num novo artigo na Foreign Affairs, em 1999, Huntington vai ainda mais longe, tratando as categorias da afinidade cultural e do poder de forma separada, frequentemente divergente. As civilizações deixam de ser unidades culturais e políticas. Embora Huntington mantenha que a afinidade cultural favorece o entendimento entre estados, as rivalidades puramente políticas podem funcionar em sentido contrário. Uma potência secundária de uma dada civilização pode ter interesse em aliar-se com a potência principal de outra civilização a fim de contrabalançar o poder do estado dominante na sua própria região. Embora civilizações e regiões do planeta não sejam exactamente a mesma coisa, na maioria das vezes coincidem.

Assim, há actualmente espaço para que os Estados Unidos aprofundem as suas relações com a Ucrânia (para contrabalançar a Rússia), com a Argentina (para contrabalançar o Brasil) ou com o Japão (para contrabalançar a China). O retrato que isto nos oferece da ordem mundial está muito longe daquele que era sugerido por uma geopolítica das civilizações. As civilizações são afinal fracturadas internamente pela própria lógica da rivalidade de poder . Não é possível tratar entidades culturais como agentes políticos, porque os impulsos da cultura e do poder nem sempre coincidem.

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Informação Complementar

O choque de civilizações e o 11 de Setembro

Na sequência imediata dos atentados de 11 de Setembro, os media proclamaram que o mundo tinha mudado; mais de sete anos depois, aspectos centrais da política internacional continuam sob a sombra desse dia. Aos atentados seguiram-se as invasões norte-americanas do Afeganistão e do Iraque, desencadeando guerras que ainda prosseguem, e a al-Qaeda cometeu novos atentados contra cidadãos ocidentais em Bali (2002), Madrid (2004) e Londres (2005). Estes e outros acontecimentos vieram dar plausibilidade à tese de Huntington, que se instalou no centro do debate político. Será o choque das civilizações a teoria capaz de explicar o que se passa?

A reacção imediata do próprio Huntington não foi categórica. Em Outubro de 2001, concedeu uma entrevista ao jornal britânico Observer onde teve muito cuidado em impedir que os ataques fossem encarados como uma confirmação da sua teoria. Huntington assinalou que Osama Bin Laden gostaria sem dúvida que os atentados fossem vistos como um «choque de civilizações», mas preferiu enfatizar as divergências internas no seio do mundo muçulmano, rejeitando a ideia de que alguma vez tivesse tratado o Islão como um bloco homogéneo.

Esclareceu ainda que nunca quis sugerir que o Islão fosse uma religião mais propensa à violência do que outras, embora circunstâncias históricas particulares, neste momento, possam levar a isso. Expressou o seu apoio à política dos EUA de tentar obter o maior apoio possível entre governos muçulmanos. Manifestou-se até receptivo à democratização dos países islâmicos, embora assinalasse as dificuldades históricas a que esse processo possa estar sujeito. E advertiu contra o perigo de que futuras iniciativas militares norte-americanas pudessem vir a servir para dar credibilidade à ideia de um choque entre o Ocidente e o Islão.

Muitos críticos assinalaram desde o início que a tese do choque de civilizações enfermava de sérios defeitos de generalização e exagero, ao tomar as posições dos fundamentalistas islâmicos como representativas do Islão no seu conjunto. Confrontado com os atentados de 11 de Setembro, a primeira preocupação de Huntington foi negar que Bin Laden fosse representativo do Islão. Entre os que procuraram evitar que a profecia do choque contribuísse para a realidade do choque, contou-se o próprio Huntington.

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* Ivan Nunes

Licenciado em Sociologia (ISCTE), prestou Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica em Relações Internacionais (FEUC). Foi docente nas licenciaturas de Relações Internacionais e de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra entre 1998 e 2004. Actualmente trabalha como jornalista freelancer e tradutor.

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Referências bibliográficas

HUNTINGTON, Samuel P., 1999 – «The Lonely Superpower», Foreign Affairs, Março/Abril.

INGLEHART, Ronald e NORRIS, Pippa, 2003 – «The True Clash of Civilizations», Foreign Policy, Março-Abril 2003. http://www.jstor.org/pss/3183594.

MAHBUBANI, Kishore, 1999 (1993) – «Os Perigos da Decadência – o que o resto pode ensinar ao Ocidente», in AA.VV., O Choque das Civilizações – o debate sobre a tese de Samuel P. Huntington, Lisboa: Gradiva: 43-48.

SEN, Amartya, 2007 (2006) – Identidade e Violência – a Ilusão do Destino, Lisboa: Tinta-da-China.

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