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- JANUS 2009 -



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Uma geopolítica das civilizações

Ivan Nunes *

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O cientista político norte-americano Samuel P. Huntington apresentou pela primeira vez a sua tese sobre o «choque de civilizações» num artigo publicado na revista Foreign Affairs, em 1993, no contexto do imediato pós-Guerra Fria. O seu propósito era simples: encontrar uma chave geral de explicação para os conflitos internacionais, agora que a Guerra Fria terminada. A tese de Huntington é que a identidade cultural e religiosa dos povos é a principal fonte de conflito na nova era, determinando os padrões de aliança e de rivalidade na política internacional, um pouco como aquilo que sucedeu durante a Guerra Fria com o alinhamento ideológico com as superpotências. As relações entre as grandes civilizações constituem o eixo fundamental segundo o qual vão organizar-se alianças e conflitos entre Estados. «O choque das civilizações dominará a política global. As linhas de fronteira entre as civilizações constituirão as frentes de batalha do futuro» (1999a: 7).

A tese é original no momento em que aparece, porque, na atmosfera optimista do «fim da História», do «triunfo da democracia», sugere um regresso ao conflito. Mais ainda, trata-se de um conflito por motivos atávicos, que remetem para características básicas, irracionais, quase irredutíveis, dos seres humanos. Ao mesmo tempo, se a tese é original, não é implausível: o início da década de 1990 é marcado pelo traumatismo da guerra civil e étnica na antiga Jugoslávia e no Ruanda. Neste contexto, há disponibilidade para ouvir um académico que vem falar de lealdades irracionais, de ódios históricos, de laços de sangue e de conflitos de séculos.

Acresce que a tese do «choque de civilizações» é atravessada pela ideia do declínio do Ocidente e dos Estados Unidos da América, precisamente no momento em que o poder ocidental (especialmente dos EUA) se apresentava mais hegemónico. Por fim, esta valorização de aspectos culturais como factor explicativo das Relações Internacionais constituiu uma relativa novidade, numa disciplina mais habituada a compreender os conflitos entre Estados dentro da lógica das desigualdades de poder, de riqueza, ou de divergências ideológicas.

 

O fim da fase Ocidental

As civilizações não substituirão os Estados como actores da cena internacional: elas não são, directamente, entidades políticas. Além disso, os choques de civilizações não explicarão tudo: além das afinidades culturais, os Estados continuarão a orientar-se também por outras lógicas e existirão conflitos e guerras no interior das civilizações. As civilizações não serão entidades perfeitamente homogéneas e monolíticas. Mas os choques entre civilizações serão mais frequentes e, além disso, mais sangrentos, mais duradouros, mais intratáveis.

Diz Huntington que, ao longo do período moderno, o predomínio do Ocidente sobre a ordem internacional tem sido tão grande que chamámos guerras mundiais a conflitos que, na realidade, não foram mais do que guerras civis internas à civilização ocidental. Nas várias fases do sistema internacional moderno, as grandes potências foram quase todas Estados cuja matriz cultural se encontrava no Cristianismo e na Reforma Protestante. Sobre este pano de fundo comum, a diferença cultural ficou esbatida e pareceu pouco importante. Mas, à medida que reemergem na cena internacional grandes potências não-ocidentais, a diferença civilizacional adquire uma importância nova. A política internacional sairá da sua «fase ocidental» e os choques entre o Ocidente e as civilizações emergentes tornam-se na principal fonte de conflito.

Este futuro de civilizações é uma espécie de regresso. Tem origens remotas na história da humanidade: as grandes civilizações estão alicerçadas em diferentes maneiras de entender o mundo e remetem, cada uma delas, para grandes religiões. O âmbito dos seus efeitos é vasto: «pessoas de civilizações diferentes têm pontos de vista diferentes sobre as relações entre Deus e o homem, o indivíduo e o grupo, o cidadão e o Estado, os pais e os filhos, o marido e a mulher, assim como perspectivas diferentes sobre a importância relativa de direitos e responsabilidades, da liberdade e da autoridade, da igualdade e da hierarquia» (1999a: 10). Segundo Huntington, a diferença cultural é mais básica e mais perene do que quaisquer outras diferenças entre seres humanos; o conflito de ideologias que estruturou a segunda metade do século XX foi, em comparação, superficial, transitório. Mesmo as rivalidades entre Estados e impérios que marcaram os últimos dois séculos foram fenómenos historicamente passageiros.

Mas, se o futuro próximo evoca o passado remoto, o contexto em que as civilizações terão de conviver está radicalmente alterado. Antes da modernidade, as civilizações constituíam mundos mais ou menos fechados, com poucos ou nenhuns contactos entre elas. O problema do convívio e da diferença civilizacional quase não se punha; não havia política «mundial» no sentido moderno. Se as civilizações são entidades antigas, enquanto sujeitos activos da política mundial elas são novas.

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O conceito de civilização

Huntington refere oito civilizações como sendo as mais importantes para a política internacional nesta nova fase: a sínica (chinesa), a japonesa, a hindu, a islâmica, a ocidental, a ortodoxa, a latino-americana e, «possivelmente», a africana (subsahariana). As civilizações aparecem e desaparecem, conhecem apogeu, declínio e morte. Têm subdivisões internas (por exemplo, os ramos europeu e norte-americano da civilização ocidental, ou os ramos árabe, turco e persa da civilização islâmica); têm também graus de coesão diferenciados.

Huntington reconhece que a identidade dos indivíduos comporta vários níveis: a cidade a que pertencem, a região, o país, a religião. Mas árabes, chineses e ocidentais, por exemplo, não partilham entre eles qualquer identidade cultural comum, salvo a que os define como pertencendo à espécie humana. «As civilizações são a forma mais acabada de tribos humanas, e o choque de civilizações é o conflito tribal à escala global» (1999b: 242). Se as civilizações ganham hoje tanta importância na política internacional é também porque a globalização enfraquece as identidades puramente locais e nacionais, e estimula sentimentos de afinidade cultural mais amplos. Porém, a humanidade não se dissolve numa única grande família. A diferença cultural não desaparece.

A tese do «fim da História» – a ideia de que, agora que as grandes disputas ideológicas terminaram, todas as sociedades convergem para um mesmo modelo social e político – é «a grande rival» que Huntington pretende rebater. A História não acabou mas, onde antes a divisão era ideológica, no futuro será cultural. E é natural que assim seja, pois a divisão do mundo em áreas civilizacionais faz parte da experiência da humanidade desde há muitos séculos.

Uma das ilusões que o Ocidente alimentou foi ter pensado que a separação entre a esfera religiosa e a da actividade política era uma característica intrinsecamente moderna; que todas as sociedades, mais tarde ou mais cedo, convergiriam para a secularização, com a religião remetida ao domínio da vida privada. Mas isto – diz Huntington – é uma pura ilusão de óptica: como até há pouco só as sociedades ocidentais se tinham modernizado, pensámos que era moderno aquilo que, afinal, era apenas ocidental. A separação entre a esfera política e a esfera religiosa é um particularismo cultural do Ocidente; aliás, um dos seus particularismos culturais mais significativos. No resto do mundo, a modernização das sociedades não traz consigo o recuo da influência pública da religião, mas antes o seu reforço. Nos países de religião muçulmana, o ressurgimento religioso progride com a deslocação das populações do campo para as cidades e apoia-se no crescimento demográfico: «entre os muçulmanos, os jovens são religiosos, os seus pais são laicos» (1999b: 118). Na China e em países da sua área cultural (Taiwan, Singapura, Coreia do Sul), os espantosos progressos materiais que estão a verificar-se são acompanhados por uma revalorização dos «valores asiáticos»; até o Partido Comunista Chinês recuperou o confucionismo. Sintomas do mesmo fenómeno podem ser encontrados noutros lugares, desde a Índia (com a ascensão do partido hindu, o BJP), à Turquia ou à Rússia.

À medida que as potências não-ocidentais forem ganhando peso na ordem internacional, a religião voltará a desempenhar um papel decisivo nas relações entre Estados; um papel que no Ocidente não tem desde os tratados de Vestefália, em 1648. As grandes potências do futuro serão os pólos centrais de cada civilização. Já muitos notaram a tendência para o aparecimento de agrupamentos «regionais» de Estados. Para Huntington, a base destes agrupamentos não é geográfica, mas civilizacional: as alianças, económicas ou de segurança, só poderão adquirir estabilidade onde haja uma base cultural comum que as sustente.

Embora por motivos diferentes, Huntington considera que a civilização sínica e a civilização islâmica estão ambas em ascensão e são aquelas que, num futuro próximo, oferecem maior probabilidade de se confrontarem com o Ocidente. «Tanto asiáticos como muçulmanos salientam que a sua cultura é superior à cultura ocidental» (1999b: 119). Os níveis actuais de crescimento económico na Ásia merecem ser comparados com os níveis muito mais modestos da Europa e dos EUA. Já no mundo islâmico, se a prosperidade económica falha, impressiona o crescimento demográfico, com o que ele implica de disponibilidade para a mobilização em torno de um projecto político. «O Islão tem fronteiras sangrentas» (a Bósnia, o Kosovo, o Cáucaso, o Médio Oriente, a Caxemira, as Filipinas) também porque, «de uma forma geral, quem está pronto a sair para matar outras pessoas são homens entre os 16 e os 30 anos» (como disse Huntington em entrevista ao Observer ). Tendo em conta a presença de recursos económicos decisivos (como o petróleo e a água) e a sua centralidade geoestratégica, o mundo muçulmano terá as suas grandes potências.

 

Recomendações ao Ocidente

Face à actual preponderância do Ocidente, estas duas civilizações «em ascensão» encontram ocasiões para juntarem esforços. Islâmicos e asiáticos erguem uma frente comum em matérias como a proliferação nuclear ou os direitos humanos e a democracia. Em meados da década de 1990, Huntington via estabelecer-se uma «aliança de facto» entre a China, o Irão e o Paquistão, mas que se ramificava num eixo «islamo-confuciano» mais alargado, consistindo na transferência de tecnologia militar entre esses países e a Coreia do Norte (do lado «sínico») e o Iraque, a Síria, a Líbia e a Argélia (do lado muçulmano).

Perante isto, que deve o Ocidente fazer? Primeiro que tudo, adquirir uma consciência clara da sua identidade e dos seus interesses próprios enquanto civilização. Huntington recomenda que os EUA e a Europa Ocidental reforcem a cooperação económica, militar e política, procurando manter a superioridade militar face às outras civilizações. Isto implica não desguarnecer o investimento militar, bem como combater os esforços dos países islâmicos e da China para ampliarem e modernizarem os seus arsenais. Além disso, é indispensável que os EUA se mantenham firmemente ancorados na tradição anglo-protestante, em vez de diluírem a sua identidade cultural em benefício do «multiculturalismo». O Ocidente deve porém procurar estender a sua influência sobre a América Latina, e manter boas relações com as civilizações «flutuantes», evitando que o Japão se alinhe com a China e reconhecendo o papel da Rússia como potência hegemónica da civilização ortodoxa.

Hoje, o Ocidente revela problemas de «desunião política», «suicídio cultural» e «declínio moral». Huntington (1999b: 359) enumera sintomas: aumento de comportamentos anti-sociais (crime, drogas), declínio da família (acréscimo da taxa de divórcio, do nascimento de crianças fora do casamento, da gravidez adolescente, das famílias monoparentais), bem como um enfraquecimento geral da ética do trabalho, com uma disseminação do «culto da autocondescendência pessoal». Os ocidentais parecem confusos quanto ao que constitui o cerne da sua civilização: «A essência da civilização ocidental é a Magna Carta, não o Magna Mac» (1999b: 65).

No plano externo, os ocidentais devem compreender que a sua cultura, sendo única, não é universal, e, portanto, devem prescindir de impor os seus valores ao mundo inteiro. «A intervenção ocidental nos assuntos das outras civilizações é, provavelmente, a mais perigosa fonte de instabilidade e de potencial conflito global num mundo multicivilizacional» (1999b: 368). O «imperialismo dos direitos humanos», que as civilizações ascendentes não estarão dispostas a tolerar, pode desencadear guerras altamente destrutivas, nas quais a vitória do Ocidente está longe de poder ser dada como garantida.

As últimas páginas do livro de Huntington dedicam-se a conjecturar como um conflito localizado poderia, num futuro nada longínquo, desencadear uma guerra mundial de civilizações, arrastando os EUA e a Europa, a China, o Japão, o mundo islâmico e a Índia. O choque das civilizações pode dar-se pelos valores e pelas razões do passado; mas as armas com que será travado são as do futuro. A terceira guerra mundial, se vier a ocorrer, será entre civilizações.

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Informação Complementar

As origens do «choque»

O tópico do «choque das civilizações» foi pela primeira vez sugerido por Bernard Lewis, em Setembro de 1990, num artigo intitulado «The Roots of Muslim Rage», publicado na revista Atlantic Monthly . Para Lewis, as raízes da «cólera muçulmana» actual residem num problema religioso; têm uma história de quase catorze séculos «de ataques e de contra-ataques, jihads e cruzadas, conquistas e reconquistas»; não se resumem a divergências concretas e não se resolvem com medidas políticas parcelares. Trata-se de «uma rejeição da civilização ocidental em si mesma, não apenas aquilo que ela faz, mas o que ela é».

Se estes aspectos filiam a tese de Huntington no artigo de Lewis, as divergências entre o pensamento dos dois autores não são menos significativas. Para Lewis, a «cólera muçulmana» não é expressão autêntica, legítima, de uma civilização. Pelo contrário: é uma variante agressiva, assente numa dada interpretação dos conflitos históricos, mas a que se opõem outras mais abertas e tolerantes. O «choque das civilizações» não coloca apenas o Islão contra o Ocidente mas atravessa a própria civilização muçulmana. Opõe as forças reaccionárias do fundamentalismo aos movimentos da secularização e da modernidade. A relação do Islão com o Ocidente inclui, além disso, atracção e repulsa. Segundo Lewis, ao adoptarem aspectos materiais ocidentais – coisas tão díspares como armas de guerra e T-shirts , televisão, Coca-Cola e constituições políticas – as sociedades islâmicas adoptam também modos de vida ocidentais.

Para Lewis, a «cólera muçulmana» não é expressão de uma civilização ascendente mas sintoma dos seus fracassos. O «choque», neste seu artigo, pretende ser o diagnóstico de um problema particular do mundo islâmico e não uma tese geral sobre as relações internacionais contemporâneas. A sua recomendação é que o Ocidente não se deixe arrastar para este choque: «É de crucial importância que nós, pelo nosso lado, não nos deixemos provocar para este conflito, que tem tanto de histórico quanto de irracional».

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* Ivan Nunes

Licenciado em Sociologia (ISCTE), prestou Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica em Relações Internacionais (FEUC). Foi docente nas licenciaturas de Relações Internacionais e de Sociologia da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra entre 1998 e 2004. Actualmente trabalha como jornalista freelancer e tradutor.

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Referências bibliográficas

HUNTINGTON, Samuel P., 1999a (1993) – «O Choque das Civilizações?», in AA.VV., O Choque das Civilizações – o debate sobre a tese de Samuel P. Huntington, Lisboa: Gradiva: 7-32.

HUNTINGTON, Samuel P., 1999b (1996) – O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa: Gradiva.

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