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- JANUS 2009 -



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Representações estadunidenses no audiovisual

João Maria Mendes *

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Uma experiência simples permite avaliar, sem pretensão de rigor estatístico, os efeitos sociais da dominação cultural americana (dos EUA) veiculada pelos entertainment media: tome-se um grupo de adolescentes (entre os 13 e os 17 anos, por exemplo), e faça-se a cada um deles as seguintes perguntas:

1a: Descreva um julgamento nos EUA: onde se sentam os advogados de acusação e de defesa, as testemunhas no momento de prestarem declarações, os jurados? Como decorre, genericamente, uma sessão?

1b: Faça uma descrição, equivalente à primeira, de um julgamento no seu país.

2a: Descreva uma esquadra de polícia americana.

2b: Faça uma descrição equivalente de uma esquadra de polícia no seu país.

Provavelmente, as respostas revelarão um conhecimento razoável dos exemplos americanos e fraco ou nulo dos relativos ao país dos inquiridos: os adolescentes já viram dezenas de vezes julgamentos e esquadras de polícia americanas na televisão ou no cinema, mas não conhecem os equivalentes do seu país, nem da vida real, nem do entertainment audiovisual. E é quase certo que a distância cognitiva aumentará se incluirmos outros termos de comparação:

3: Descreva um julgamento e uma esquadra de polícia num país europeu que não o seu, num país islâmico, em África, na China,...

De forma mais graduada, encontrá-la-emos ainda se alargarmos os domínios do inquérito a outros temas:

4: Os americanos vivem mais em casas de dois andares ou em apartamentos de um andar só? E como são essas habitações? (compare com o seu conhecimento das habitações mais comuns num país islâmico, em África, na China,...)

5: Descreva o funcionamento de um serviço de urgência hospitalar americano (compare com o que sabe de urgências hospitalares num país islâmico, em África, na China,...)

6: Descreva uma redacção de um jornal americano (etc., etc.).

O melhor conhecimento dos exemplos estadunidenses é provocado pela hegemonia massiva dos conteúdos de entertainment a que os sujeitos inquiridos estão expostos na sua vida quotidiana. E esssa situação acentua-se devido à tradição de «realismo» dos conteúdos audiovisuais estadunidenses em matéria de representação do real: a mimesis do funcionamento de instituições correntes e de rotinas da vida quotiana é genericamente fiável, como forma de representação da realidade a que se refere.

Se assim é, estamos diante de um dos aspectos mais relevantes da dominação cultural estadunidense em boa parte do mundo contemporâneo, alimentada pelo funcionamento normal das indústrias culturais no seu habitat privilegiado, que é o sistema dos media. O sistema dos media, ele próprio dominado pela televisão (informação e entertainment ), veicula predominantemente conteúdos estadunidenses, grande parte dos quais relativos ao funcionamento corrente das instituições, às normas, aos modos de vida, ao dia-a-dia e aos valores norte-americanos. Para um número significativo de adolescentes e jovens adultos de todo o mundo, expostos ao entertainment audiovisual assim caracterizado, numa base diária, este propõe, de forma sistemática, uma second life virtual, onde se exprimem, a uma grande distância de outros, os valores, o modelo de sociedade, a cultura e os modos de vida americanos, com enorme poder formativo.

Essa dominação cultural é confirmada pelo mercado do audiovisual: na Europa, na última década, os filmes (exibidos em salas de cinema) e os conteúdos televisivos ficcionais estadunidenses representaram uma quota próxima dos 70% (ou superior) desse mercado, com taxas igualmente elevadas na Austrália/Nova Zelândia e no Japão (cf. bases de dados do European Audiovisual Observatoy ).

 

Multiculturalismos audiovisuais

O main stream de Hollywood e as produtoras americanas de conteúdos genéricos e de ficção para as televisões ( Disney, AOL-Time Warner, Sony, General Electric, Murdoch's News Corporation, Seagram ), que produzem conteúdos globe-trotters, destinados em primeiro lugar ao extenso mercado nacional, mas também a todo o mundo, apreciam ser vistos como campeões da diversidade cultural e étnica, aparentemente «desideologizada» e «apolítica». A profusão de personagens de origens e raças diferentes, trabalhando com objectivos e ambições comuns, e no mesmo ambiente profissional, tornou-se uma obrigação do pensamento politicamente correcto dos estúdios e da produção, na concepção dos seus conteúdos.

A chave multi-racial e multi-étnica tornou-se, no universo mediático norte-americano,
a começar pelos seus conteúdos ficcionais, o espelho idealizado de uma sociedade onde, em pouco tempo, a integração produziu os seus frutos, normalizando, homogeneizando e, finalmente, apagando as diferenças entre pessoas de raças, culturas ou origens diversas, que foram igualizadas pelo embranquecimento geral.

Ora, os EUA não podem ser criticados por os seus conteúdos ficcionais para o cinema e para a televisão espelharem, mais rapidamente do que na Europa e no resto do mundo, a evolução da sociedade e os seus conflitos e problemas, internos e externos: ontem, a luta pelos direitos cívicos, a guerra do Vietname, hoje, a guerra no Iraque, no Afeganistão e «contra o terrorismo», mas também os descuidos na exploração do nuclear civil, a denúncia de crimes ambientais, as crises do ensino, a explosão da família triádica convencional e suas consequências sociais, a “ghettização” e a exclusão social de pobres e dos sem-abrigo, a luta feminista, a problemática homosexual, a expressão social das «vítimas» de várias espécies, são, nos EUA, temas continuamente abordados pela ficção cinematográfica e televisiva.

Isso não significa que neste universo não abundem visões estereotipadas, rapidamente integradas na ideologia normalizadora que detém a hegemonia no sistema dos media, quer na área ficcional quer na jornalística: um estudo de 900 filmes americanos com personagens árabes mostrou como a maioria destas eram caricaturas grosseiras e racistas (SHASHEEN, Jack G., Reel Bad Arabs: How Hollywood Vilifies a People, Olive Branch Press, NY, 2001).

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Significa, sim, que os EUA são histórica e socialmente multiculturais, dada a diversidade das populações que os formaram, e que se tornaram politicamente multiculturalistas, por razões de unidade e de coesão nacionais.

E significa também que os EUA são talvez a sociedade contemporânea que mais rapidamente incorpora, até à sua própria super-estrutra política, as mudanças culturais que exprimem mudanças sociais profundas: o facto de a investidura democrática à candidatura presidencial ter sido disputada, ao longo de 2008, por um afro-americano (Barack Obama) e por uma mulher (Hillary Clinton), é expressão do caminho percorrido por essa sociedade desde a luta pelos direitos cívicos e a incorporação da herança da contra-cultura feminista (embora, neste último caso, muito mitigada pela natureza dinástica e sucessória da candidatura, tentada pelos Kennedy, inaugurada pelos Bush e que os Clinton seguiram de bom grado).

 

Um programa para minorias?

Sobretudo preocupado com as relações entre as sociedades ocidentais e o mundo islâmico, no contexto gerado pelos atentados de 2001 e pelas guerras de retaliação no Afeganistão e no Iraque, o Relatório do grupo de alto nível para a Aliança das Civilizações, de 13 de Novembro de 2006, chama a atenção, nos seguintes termos, para o impacto dos media e do entertainment:

«Algumas das formas de pressão mais poderosas no mundo de hoje – controlo político e forças do mercado – impedem a produção, quer de noticiários de qualidade, quer de conteúdos de entertainment que retratem equilibradamente culturas estrangeiras» [...]. «Os entertainment media também alimentam percepções hostis. [Por exemplo], são urgentemente necessárias imagens mais equilibradas de muçulmanos comuns nos mass media Ocidentais».

O relatório recomenda que os profissionais da informação adoptem códigos de conduta tão estritos como os dos profissionais da justiça ou da medicina (e que os cumpram...), e que seja dado apoio prioritário a quatro tipos de iniciativas mediáticas:

«a) De produtores apoiados para trabalharem em joint ventures ou em co-produções sobre temas inter-culturais e religiosos; b) De produtores que visem criar conteúdos educativos em formatos de entertainment, a distribuir durante acontecimentos mediáticos de dimensão mundial (Campeonatos do Mundo, Olímpiadas, etc.); c) De produções destinadas à juventude e que contrariem estereótipos preconceituosos, em forma de videogames, cartoons, web-sites para jovens, e sobre temas inter-culturais e inter-religiosos; d) De séries de TV em diversas línguas, sobre aspectos históricos, sociais e psicológicos das relações entre sociedades, com o objectivo de valorizar a compreensão mútua».

Decerto, as intenções de um tal programa são as melhores. Mas ele aponta um conjunto de orientações muito heterogéneas, típicas das proclamações generalistas das organizações internacionais.

Tem sido inumeramente comentada, por exemplo, a inacreditável dificuldade com que os países da Europa (entre os mais desenvolvidos do Mundo) fazem circular entre si produções cinematográficas e televisivas nacionais – quer devido à diversidade das línguas, quer por falta de concertação estratégica «europeísta». Dinamarqueses, suecos, finlandeses, franceses, ingleses, alemães, holandeses, belgas, suíços, checos e polacos, portugueses e espanhóis, vêem pouco as produções uns dos outros, o que favorece vertiginosamente a hegemonia americana que referíamos atrás. Tarde ou cedo, será indispensável alterar radicalmente este cenário, através de políticas que só poderão ser adoptadas pelos poderes legislativos da UE, em articulação com o Conselho da Europa, para defesa da própria diversidade cultural e identitária europeia.

Também é necessário antever quais são os destinatários das iniciativas propostas, nesta matéria, pela Aliança das Civilizações: na Arábia Saudita, por exemplo, o primeiro festival de cinema que o país conheceu foi o de Jeddah, em 2006: a palavra «cinema» é, ali, tão controversa, que o festival não pôde incluí-la na sua designação: chamou-se «Festival de show visual de Jeddah».

Como exemplo de tarefas de menor diculdade e amplitude: seria relativamente fácil mudar o destino de curtas e médias metragens de factura africana (magrebina e subsariana), que quase não circulam fora dos festivais militantemente multiculturalistas e inter-culturais. Em França, destaca-se o Festival Plein-Sud, de Cozes; na Suíça, o Media Nord-Sud, Black Movie, Racines Noires, e o importante Festival do Cinema Iraniano. Mas, fora desse âmbito cinéfilo e militante, os produtos que neles circulam (e eles existem!) quase não penetram nas televisões nem no mercado dos DVD – o que os torna inexistentes para públicos mais vastos.

A Aliança das Civilizações – uma «missão» da ONU – não foi orçamentada para tentar mudar a estrutura do sistema dos media na era da globalização; mas poderá desenvolver influências positivas no seio dessa estrutura, envolvendo agentes do sistema com os seus ideais, quer através do seu discurso internacional, quer, sobretudo, através dos governos aderentes e seus coordenadores nacionais.

 

Entertainment e edutainment

As questões acima sugeridas, relativas às relações de forças entre culturas audiovisuais dominantes e dominadas nos mercados contemporâneos, articulam-se, por outro lado, com outras mais gerais, relativas aos efeitos sociais do funcionamento dos media como factores de educação e de aprendizagens.

Na prática, o sistema dos media funciona, em todo o mundo, como um produtor/reprodutor de saberes informais, que rivaliza com o sistema de ensino formal, tradicionalmente representado pela escola. Hoje, qualquer indivíduo medianamente exposto ao sistema dos media, e em particular à televisão, sabe mais, através dela, sobre como os egípcios construíam as suas pirâmides, ou sobre o nascimento, apogeu e queda do III Reich alemão, ou sobre a vida das mais diversas espécies animais, do que, sobre os mesmos temas, aprendeu na escola. Por este motivo, a televisão tem sido descrita, pela sociologia da comunicação, como uma espécie de “universidade popular”. Da fusão entre os termos Education e Entertainment surgiu o neologismo Edutainment, que designa os conteúdos educacionais e formativos apresentados como entertainment.

Ora, o que é verdade para as pirâmides do Egipto, para o III Reich e para as espécies animais, também o é para o conhecimento das sociedades, conflitos e modos de vida contemporâneos. Para além do universo das escolas, a dominação estadunidense gera assimetrias e distorções pronunciadas na leitura e compreensão do Mundo. Tal hegemonia impede a diversidade cultural, tal como a têm defendido a UNESCO, o Conselho da Europa e, mais recentemente, a União Europeia.

Os EUA parecem não entender que existe uma contradição inultrapassável entre a sua diversidade cultural e o seu multiculturalismo internos (que devem, naturalmente, ser exportados e conviver com outros), por um lado, e a diversidade cultural e os multiculturalismos impostos pela realidade do Mundo, marcada pela desigualdade, com as suas tensões, desconfianças, crises de relacionamento e ressentimentos, por outro.

A versão multicultural americana do mundo contemporâneo é, assim, tendencialmente entendida no exterior como um discurso imperial de apaziguamento, que ignora as desigualdades reais, e não constitui uma proposta aliciante para a efectiva multiculturalidade, conflitual e multi-identitária, de um mundo onde proliferam as necessidades de afirmação étnicas, regionais, religiosas e nacionais.

No próprio terreno externo onde a cultura americana é dominante desde o Plano Marshall — a começar pela Europa — o ressentimento anti-americano tem-se mostrado equivalente ao fascínio provocado pelo que resta do “american way of life”. Relativizar a dominação cultural dos EUA não depende de desfazer pontualmente nenhum “nó górdio”: depende de se obter uma muito maior circulação de conteúdos (onde eles já circulam) de origens bem mais diversificadas, que contribuam para o questionamento do pensamento único que também parece imperar nos media e no entertainment globalizados.

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Informação Complementar

Alguns números (ano dereferência: 2000)

• A Europa rende ao cinema dos EUA 56% das suas receitas mundiais, a Ásia 25%, a América Latina 13%, a Austrália/Nova Zelândia 6%.

• Nos EUA, o mercado interno é quase monopolizado pelas produções nacionais; os filmes estrangeiros (na sua maioria em língua inglesa) representam cerca de 5% das receitas das salas. Os filmes em línguas estrangeiras representam entre 1 e 2% do total das receitas de bilheteira.

• Com cinco filmes por pessoa/ano, os EUA são o país com maior afluência às salas de cinema.

• Em 2002, a quota dos filmes originários dos EUA nas salas europeias subiu para 71,2%. Os mais vistos foram Harry Potter e a Câmara dos Segredos (mais de 38 milhões de espectadores), Spiderman (28,8 milhões) e a primeira parte de O Senhor dos Anéis (27,5 milhões). Em 2004, voltou a subir para 71,4%.

• Entre os dez filmes mais vistos na Europa, em 2002, apenas os dois últimos lugares da tabela são de origem europeia ou participada: Astérix e Obélix, missão Cleópatra (19,2 milhões de espectadores) e o 007, Die Another Day (produção britânica mas participada pelos EUA – 17,9 milhões).

• No mesmo ano, a quota de penetração de filmes europeus nos EUA atingiu apenas 4,7%. A produção dos três filmes mais vistos ( Die Another Day , 25,8 milhões de espectadores, Gosford Park , 7 milhões, e About a Boy ), de língua inglesa, foi participada pelos EUA .

• Situação em Itália: cinema nacional, 15,7% do mercado, cinema americano, 70%.

• Grã-Bretanha: cinema nacional, 13% do mercado, cinema americano, 83%.

• Alemanha: cinema nacional, 14%, cinema americano, 80%.

• Espanha: cinema nacional, 13,8%, cinema americano, 80%.

• França: cinema nacional, 28,55%, cinema americano, 63%.

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* João Maria Mendes

Licenciado em Filosofia pela Universidade de Lovaina (Bélgica). Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Docente na Escola Superior de Cinema e Teatro e na Universidade Autónoma de Lisboa. Subdirector do Observatório de Relações Exteriores da UAL.

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