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- JANUS 1999-2000 -

Janus 2001



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Leituras cruzadas

Marie-Françoise Durand *

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Os mapas produzidos ao longo da história da humanidade são, ao mesmo tempo, a representação gráfica do mundo própria de cada época e de cada civilização e o utensílio da sua representação mental e da sua conceptualização. Os chineses faziam mapas circulares e fechados do Império do Meio, ignorando o resto do mundo, que consideravam bárbaro. Os gregos desenharam a primeira geometria imaginária que tornou concebível e identificável o espaço do Mediterrâneo e onde eles eram o centro e os actores principais. Os muçulmanos pensavam e representavam o mundo em ângulos abertos à expansão da Umma a partir do seu centro, Bagdad.

Com as grandes descobertas dos navegadores e dada a sua extraordinária projecção para além dos limites do mundo conhecido das identidades e dos espaços estabilizados, concluiu-se o traçado de um mundo esférico, medido, identificado, calculado para se poder antecipá-lo, de algum modo finito e desprovido de centro.

Desde o início dos tempos modernos até ao termo das conquistas coloniais e à medida que se reduz a Terra Incógnita e que o Estado se difunde, o mapa muda de função e torna-se um poderoso instrumento de territorialização. Criando a imagem de referência incontestável do território estatal, reifica-o e fá-lo existir. Primeiro porque indica as fronteiras, essas linhas imaginárias fruto de projectos políticos: linhas de inclusão, que estabelecem o espaço do monopólio da potência legítima e homogeneízam o espaço de um povo, de um território e de um poder, mas também linhas de exclusão, que expulsam o outro para a alteridade absoluta. Depois porque, iconografia do Estado nacional territorial e dos seus anexos coloniais, o mapa é igualmente o instrumento do controlo estatal interno, policial, administrativo e fiscal. Divide-se, traça-se, esquadrilha-se, fabrica-se e fixa-se a nomenclatura interior em nome da qual o espaço estatal vai ser pensado, administrado, gerido, organizado. O diplomata e o soldado são os grandes desenhadores da linha externa, o administrador e o político os das linhas internas... enquanto os geógrafos se perdem em inventários do quadro físico e dos dados naturais, quase não se aventurando no social e fugindo ao político.

A partir do final do século XIX, para satisfazer as necessidades de administrações de aparelhos de Estado cada vez mais estruturados e cuja recolecção estatística não pára de enriquecer, a cartografia afina os inventários demográficos, militares, económicos, fiscais, tecnológicos, sociais, religiosos ou culturais. A diversidade interna dos territórios nacionais, ignorada no mapa político do mundo, pode então surgir, dando a ver e permitindo pensar as regularidades ou irregularidades espaciais dos factos económicos e societais. E a época da multiplicação dos grandes atlas nacionais, cuja existência e cujo carácter mais ou menos exaustivo reenviam para o grau de conhecimento e de domínio que estes Estados, em teoria semelhantes entre si, têm sobre os seus territórios e as suas sociedades.

À finalidade administrativa e de controlo acrescenta-se uma vontade didáctica. Estas monografias são o equivalente iconográfico e espacial das grandes narrativas históricas, fundadoras das identidades nacionais, de que são contemporâneas. Mas a soma dos mapas nacionais, encerrados em sistemas estatísticos e gráficos diferentes e incomparáveis entre si, não permite a mudança de escala nem uma visão apurada do mundo da economia, das trocas e das sociedades. As mudanças de escala permanecem, ora limitadas ao mundo da cartografia física – relevos, clima e hidrografia –, conformes a concepções deterministas que ajudam a alimentar, ora às necessidades de representação das relações de forças, da balança de poderes entre Estados, da paz e da guerra que são os da visão geopolítica do mundo.

Com o nascimento dos grandes organismos interestatais mundiais, designadamente no quadro onusiano posterior à Segunda Guerra Mundial, torna-se possível, para a maioria dos Estados, dispor de dados harmonizados e comparáveis no espaço e no tempo. Esta harmonização permite o grande desenvolvimento de uma cartografia quantitativa à escala do mundo, sobretudo em termos de critérios clássicos – poder, demografia e riquezas –, alimentando as grandes concepções dominantes da partição do mundo entre Norte e Sul, ou entre Centro e Periferia. A lógica da cartografia deste mundo inter-estatal é reforçada pelas descolonizações criadoras de novos Estados e pela intensificação da Guerra Fria.

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Só recentemente, e sobretudo desde a implementação de serviços estatísticos supra-nacionais, que recolhem e harmonizam dados aos três níveis infra-estatal, estatal e supra-estatal (região Eurostat por exemplo), é possível emanciparmo-nos das monografias e fazer "desaparecer" as fronteiras dos Estados, pondo, assim, em evidência as regularidades e coerências territoriais transfronteiras e permitindo a visão clara de espaços integrados e que se homogeneízam, designadamente pela redistribuição compensatória das distanciações. Mas são poucas as grandes regiões em vias de integração que, no mundo, dispõem actualmente deste tipo de instrumento.

O fim da Guerra Fria e uma concepção, lentamente clarificada, de um mundo cada vez mais interdependente, atravessado por deslocações de pessoas, capitais, bens materiais e imateriais, informações, modelos políticos e societários, fenómenos que antecedem aquilo que começa a ser percebido como um "corte" histórico maior, exigem uma cartografia diferente e profundamente renovada. Como representar e ler este mundo tornado mais tenso entre os processos de globalização e de regionalização, finito, fechado, cheio, territorializado até ao extremo, descoberto em todos os sentidos, conhecido até ao infinitamente pequeno pelas imagens de satélite e pelos sistemas de informação geográfica, esquadrilhado pelos exaustivos olhares estatal, supra-estatal e infra-estatal, e sobre o qual dispomos de cada vez mais mapas mais exactos, mais disponíveis para pessoas que se deslocam cada vez mais? Como ordenar visualmente este excesso de informação feita de estratos que se sobrepõem uns aos outros? Como propor uma leitura, leituras?

Representar este mundo de fluxos e de redes, que tornam cada vez mais aleatório o poder dos Estados, obriga a associar, num mesmo movimento, a análise de dois grandes tipos de funcionamento do espaço mundial: o dos territórios dos Estados e o das redes de circulação, quer dizer – obriga-nos a emanciparmo-nos da lógica cartográfica estatal e interestatal precedentes. Ver o mundo de outro modo, e de vários modos ao mesmo tempo, mudar as escalas, as projecções, os centramentos ou enquadramentos, as métricas, os dados, o questionamento, ousar interpretar, portanto envolvermo-nos e comprometermo-nos, exige uma cartografia de autor e é bem disso que se trata aqui, construindo imagens didácticas simples a partir de conceitos clarificados. Nenhum dos mapas seguintes é mais preciso ou pertinente que outro, e outros podem ainda, naturalmente, construir-se. São o confronto e o cruzamento destas diferentes grelhas de leitura que permitem iniciar um enfoque da complexidade do mundo contemporâneo (ver Infografia).

 

Uma longa série de escolhas

Fabricar um mapa envolve uma longa série de escolhas imbricadas, que pressupõem uma análise crítica das representações dominantes ou de reflexos puramente ideológicos. A projecção (em que, por definição, nenhuma é mais rigorosa do que outra, porque se trata de passar da esfera ao plano), o enquadramento (função da questão posta ou da demonstração a fazer, e não do etnocentrismo vulgar), a escala, os destaques, a recolha e selecção dos dados (amiúde heterogéneos, como os aparelhos estatísticos nacionais, ou lacunares, ou pouco fiáveis, raramente actualizados, pouco adequados aos problemas a resolver ou, ainda, excessivamente onerosos), tomam a operação complexa. Depois, tratar estes dados, transformá-los em classes que permitam construir a legenda e diferenciar os espaços, são passos que se podem fazer segundo numerosos métodos, estudados desde há não muito tempo e por pouca gente. Enfim, a realização do mapa propriamente dito exige o domínio das regras elementares da semiologia gráfica, uma selecção e hierarquização dos signos em função do sentido, a transcrição da ordem ou da tipologia... e que desconfiemos dos códigos culturais das cores – tudo escolhas decisivas para a eficácia da mensagem final e para a leitura do mundo que o mapa produz.

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1 Criado em 1994 no Instituto de Altos Estudos Políticos de Paris para apoiar o ensino das "Grandes linhas de partilha do mundo contemporâneo", o Atelier de Cartografia de Ciências Políticas desenvolve e diversifica a sua produção cartográfica sobre os processos de globalização e de regionalização. Associando toda uma rede de docentes, de investigadores e de especialistas, o Atelier trabalha para o ensino, para a imprensa, para o mundo da edição, para as administrações e empresas quer em França, quer no resto do mundo.

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* Marie-Françoise Durand

Professora Agregada de Geografia. Adjunta do Director do Instituto de Estudos Políticos de Paris. Responsável pelo Atelier de Cartografia e Co-Responsável pela Cátedra Mercosul.

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