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A invenção da Europa como continente (I)

João Ferrão *

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Para quem olhe para um mapa do mundo, a Europa não passa de uma península localizada na parte oeste da enorme massa terrestre que é a Eurásia. Não admira, por isso, que a circunspecta Enciclopédia Britânica inicie a entrada “Europa” afirmando que “Entre os continentes, a Europa é um caso anómalo”. Considera-se, hoje, que a Europa constitui um dos cinco continentes do mundo. Socializados, desde pequenos, com esta partição convencional, muitos de nós tenderemos a aceitá-la como uma realidade natural e, por isso, inquestionável. Ora a identificação de cinco continentes é historicamente recente, polémica e, sobretudo, reveladora do papel que a Europa – o único continente que verdadeiramente não o é – teve na sua definição.

Um continente é uma espécie de grande ilha. Embora não exista um limiar dimensional mínimo explicitamente estabelecido, compreende-se, por exemplo, que a Gronelândia, a maior ilha do mundo a seguir à Austrália, não seja classificada como continente. Mas o critério de “grande ilha” é utilizado de forma algo casuística. Dos cinco continentes, dois – a Oceânia (um conjunto de ilhas) e, sobretudo, a Europa (uma península de um território mais vasto) – não se ajustam a essa norma. E a Antártida, com uma área superior à da Europa, foi excluída, não por possuir uma superfície insuficiente mas por ser desabitada.

Ao longo da história houve várias partições do mundo. Em manuais escolares do século XIX ainda era possível encontrar menções à existência de dois grandes continentes, um, correspondendo ao Antigo Mundo euro-afro-asiático (os três filhos de Noé), constituído pelo que designamos hoje por Europa, Norte de África e parte da Ásia, e outro, relativo ao Novo Mundo, repartido pela América, pela África a sul do Sara, pelo sector mais meridional da Ásia e pelos oceanos Índico e Pacífico. A definição dos cinco continentes é, pois, historicamente recente. E foi estabelecida pelos europeus, num momento em que a expansão colonial iniciada com as Descobertas e aprofundada durante cerca de 400 anos permitiu um conhecimento e um domínio sem precedentes sobre a totalidade do planeta. Concebida pelos europeus, e por isso traduzindo a sua visão do mundo, esta representação convencional tornou-se, entretanto, praticamente universal. Os europeus inventaram, portanto, o sistema de cinco continentes. Mas antes disso inventaram-se a si próprios como continente. É a história desta invenção que aqui se apresenta brevemente.

 

Europa: uma heroína… mitológica e asiática?

Segundo uma das teorias existentes, o termo Europa provirá da mitologia clássica. Seria uma princesa fenícia raptada por Zeus quando passeava, com amigas, na praia de Tiro. Metamorfoseado em touro, Zeus aproximou-se mansamente de Europa, impelindo-a a montar no seu dorso. Nadou, então, até Creta, levando consigo uma Europa que facilmente se deixou seduzir. Ao termo Europa não se atribuía qualquer sentido geográfico: tratava-se de uma figura humana, não de um espaço físico. Mas o seu significado etimológico – “aquela que vê longe” – não deixa de ser premonitório. E é particularmente irónico verificar que a designação Europa se refere a alguém que nasceu…na Ásia!

 

A Europa como território: terra de bárbaros ou de povos intelectualmente superiores?

Remonta ao século VII a. C. a primeira utilização com significado geográfico da designação Europa, referindo-se à parte continental (interior) da actual Grécia. Para alguns autores, a palavra Europa será de origem semita, significando “a terra onde o sol se põe”, o que poderá justificar a associação acima indicada. A gradual expansão dos Gregos, primeiro ao longo do litoral norte do Mediterrâneo e mais tarde junto à fachada atlântica, levou a que a designação Europa ganhasse um campo mais vasto de aplicação. A partir de um certo período, e por razões desconhecidas, o termo foi utilizado para identificar, de forma genérica, uma das quatro partes em que os gregos dividiam o mundo.

O mapa de Eratóstenes, cuja influência permanecerá durante toda a época medieval, coloca a Grécia no centro e define três periferias acessíveis através de mares distintos: a Ásia, a leste do mar Egeu; a Líbia (área do Norte de África então conhecida pelos gregos), a sul e a leste do Mediterrâneo; e a Europa, a oeste do mar Jónico. As duas primeiras periferias eram consideradas relativamente prósperas e associadas às raízes da cultura helénica. A Europa era vista como o mundo dos bárbaros, culturalmente atrasada e pouco habitada. Aristóteles, por exemplo, referia que os habitantes da Europa eram corajososmas deficitários em inteligência…

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O termo Europa passa, assim, a corresponder a um espaço geográfico. Mas a configuração do mapa do período de apogeu da civilização grega, atingido com Alexandre, o Grande, explica por que razão, nessa altura, não era atribuída qualquer relevância política, estratégica ou cultural ao espaço designado por Europa. Também para os romanos a Europa constituía um espaço periférico ocupado por bárbaros. O seu território de referência era, naturalmente, o Mediterrâneo, significativamente apelidado de Mare Nostrum. Parece ter sido Estrabão (58 a. C.-25 d. C.) o autor da primeira descrição das condições naturais (relevo, clima, etc.) em que viviam os povos europeus. Apesar de apelidados de bárbaros, considerou-os intelectualmente superiores aos povos de outros continentes. Mas as referências ao termo Europa eram raras, confinando-se praticamente a trabalhos realizados por geógrafos. E a persistente influência do mapa de Eratóstenes contribuiu, sem dúvida, para o prolongamento da ideia de Europa como uma periferia pouco qualificada.

 

A Europa descobre-se a si própria: cristianismo, território e consciência europeia

Em 711, os árabes atravessam o estreito de Gibraltar, penetram na Península Ibérica e iniciam a sua expansão para norte, até à Gália, dando lugar a um período de ocupação que em algumas áreas se prolongará por diversos séculos. Graças aos conhecimentos trazidos da Grécia antiga, várias dessas áreas tornar-se-ão focos culturalmente bastante avançados. É como reacção a este movimento de expansão árabe que o termo Europa irá adquirir, pela primeira vez, uma conotação política e cultural. A consciência europeia nasce, portanto, por oposição a forças externas bem definidas, consideradas hostis: os árabes e a sua cultura muçulmana. Ser europeu é, então, ser cristão. Os elementos fundamentais de identidade da civilização europeia serão, por isso, os princípios, os valores e as regras do cristianismo. Deste ponto de vista, a derrota dos árabes na batalha de Poitiers (732) é particularmente simbólica. Por um lado, interrompeu o movimento de expansão árabe para norte. Por outro, implicou, pela primeira vez, a emergência de uma ideia política de Europa. Por outro lado ainda, associou essa ideia ao cristianismo.

O perigo da conquista árabe lança, assim, as raízes de um movimento de solidariedade assente na oposição entre ser europeu e cristão ou ser árabe e muçulmano. É, deste ponto de vista, bastante significativo que os árabes tenham sido vencidos na batalha de Poitiers por um exército então classificado por um cronista anónimo como “europeu”. A ideia de Europa coincide grosso modo com o reino franco de Carlos Magno, cuja delimitação física traduz, aproximadamente, o espaço de influência da igreja católica. A Europa Occidens demarca-se, assim, tanto do império romano do Oriente, a sudeste, como das frentes pioneiras em cristianização, a nordeste. São várias as menções à ideia de Europa efectuadas a propósito de Carlos Magno, coroado pelo papa em 800, e do seu reino. Sobre este assunto, diz-nos Jean Baptiste Duroselle (1968: 756): “Desde o início do seu reino, um clérigo de nome Cathulf recomendou [a Carlos Magno] que agradecesse a Deus por lhe ter dado o domínio sobre a Europa. Em 799, o poeta Angibert designa-o de “chefe venerável da Europa”, “rei, pai da Europa”, “Carlos, sábio, modesto […] mestre do mundo, bem amado do povo […] figura cimeira da Europa […] em vias de desenhar os limites da nova Roma”. Iniciou-se, pois, o processo de construção de uma nova identidade de base territorial, tendo a igreja católica como referência unificadora.

O reino de Carlos Magno desfaz-se após a sua morte. Mas o cristianismo como força federadora de distintos povos europeus permanece vivo, sobretudo através das Cruzadas e do processo de Reconquista da Península Ibérica. Iniciado em 1095, o movimento das Cruzadas, expedições militares de cristãos provenientes dos mais diversos pontos da Europa que visavam expulsar os muçulmanos de Jerusalém e de outros lugares da Terra Santa, só terminará em 1291. E o processo de Reconquista da Península Ibérica, simbolicamente iniciado com a vitória do asturiano Pelágio em Covadonga (718), apenas se concluirá em 1250, no caso de Portugal (conquista do Algarve por D. Afonso III), e em 1492, no caso de Espanha (conquista de Granada no reinado de Isabel, a Católica). Durante toda a Idade Média mantém-se o sonho de unificar a Europa. Para uns sob o comando de um imperador, para outros sob a direcção de um papa, para outros, finalmente, através da constituição de uma liga de príncipes cristãos. Mas para todos sob a égide do cristianismo. De tal forma, que é a ideia de cristianismo, e não a de Europa, que constitui o elemento agregador. A utilização da palavra Europa vai, aliás, rareando ao longo da Idade Média.

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* João Ferrão

Doutorado em Geografia Humana pela Universidade de Lisboa. Investigador principal do Instituto de Ciências Sociais.

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